- Medroso! Medroso!
O coro já era
conhecido, sempre repetido quando Raulzinho, o menino mais raquítico da Vila,
evitava algum convite dos colegas da sua idade. Na escola o apelidaram de
mosquito prego, por causa da sua magreza, do seu tamanho e da cor da sua pele.
Não fazia nada de nada na hora das brincadeiras da rua, nem na aula de educação
física. E, reparem, era bom que não fizesse mesmo, porque dava uma pena danada
aquela coisinha minúscula e frágil andando entre os outros adolescentes.
Parecia que ia se quebrar a qualquer momento.
As meninas não
olhavam para ele. Minto, olhavam: as filhas de dona Cotinha, que morava no
final da rua, passavam o dia estudando o menino e dando risinhos estridentes,
entredentes. Um dia Raulzinho passou perto e teve a impressão de ouvir uma delas
falando: “Parece um bicho-pau”.
Raulzinho parecia
viver num mundo totalmente separado do mundo dos outros. Quase não abria a
boca. Apenas para responder “não” se o convidavam para alguma brincadeira em
que precisasse se mexer. Em sala de
aula, quando o professor o instigava a fazer alguma declaração, dizia tudo
baixinho e quase ninguém o ouvia, ainda mais que a classe fazia a maior
algazarra, repetindo, a meia voz, o refrão de sempre:
- Medroso! Medroso!
Fora da escola,
ficava sentado na calçada, em frente à sua casa, olhando o movimento da rua.
Sua mãe, às vezes, vinha à janela para ver o que estava fazendo, já sabendo que
o encontraria sentado ali, como sempre.
- Esse menino tem
algum problema...
Um dia, Maneco
resolveu brincar com o rapazito.
Maneco era o cara
mais corpulento da Vila e estudava na mesma sala de Raulzinho. Aliás, havia uns
quatro anos que estudava naquela série. Raulzinho também repetira um ano, por
causa do sua baixa participação nos trabalhos em grupo, de modo que os dois eram
velhos conhecidos, embora não se relacionassem. Pois Manecão chegou pro
Raulzinho na hora da Educação Física e soltou o decreto:
- Hoje você joga no
meu time!
- Não... – Disse
simplesmente o menino.
- Não é um convite,
zé mané! Eu estou mandando você jogar no meu time hoje!
- Já disse que não,
não gosto de futebol – falou Raulzinho com sua voz miada - e era a primeira vez
que o ouviam falar tanto.
- Você perdeu a
noção do perigo?
Manecão já berrava,
os meninos que até então não tinham dado importância à conversa começaram a se
aproximar. Os mais afoitos por novidade atiçavam, esperançosos:
- Xi, vai ter
porrada hoje!
Maneco pegou com
força no braço de Raulzinho, parecia que apertava uma talisca de madeira.
- Escuta aqui, ô
viadinho! Ou você joga no meu time hoje, ou entra na porrada!
Raulzinho não dizia
nada, apenas olhava o rosto do outro atentamente. Os olhos tremiam, demonstrava
insegurança, mas não parecia estar morrendo de medo. Por que ele não chorava?
Isso inquietava o Maneco, acostumado a incutir terror nos meninos menores que
ele, isto é, quase todo mundo da escola. Apostou que faria o menino chorar em
segundos e agora aquela coisinha ficava ali olhando pra ele, sem esboçar
palavra, e nem uma gotinha de lágrima nos olhos. Que que aquele moleque tinha?
Ele era um medroso, um medroso! Por que não demonstrava esse medo? Foi
afrouxando o braço lentamente, até soltá-lo de todo. Era para ser apenas uma
brincadeira, mas agora ele iria até o fim:
- Pede pra sua mãe
acionar o plano de saúde, que hoje você vai tomar a maior surra da sua vida.
E saiu em direção à
quadra para iniciar o jogo com os outros. Raulzinho sentou-se numa cadeira e
não se moveu dali durante toda a aula de educação física. Ao voltarem para a
sala, sentou-se em seu lugar, que era quase no fundo da sala, na fila da
direita. De lá, podia ver o Manecão em uma das primeiras cadeiras da fila da
esquerda; sempre que o professor virava as costas, fazia para ele o gesto
universal, batendo o punho fechado na palma da mão.
Um pouquinho antes
de a sirene anunciar o fim da última aula, Raulzinho levantou a mão e pediu
licença. Não era seu costume fazer isso, então o professor concluiu que era
coisa urgente mesmo. Não queria nenhum menino cagado na sala de aula, ainda
mais aquele, que já era tão perseguido pelos colegas. Permitiu que o menino
saísse. Manecão deu um riso de satisfação. O maricas tava se borrando de medo,
na certa foi falar ao diretor sobre o iminente perigo no portão. Já não
precisaria mais bater nele, deixaria passar. Só queria mesmo fazer medo e agora
estava satisfeito. Se pudesse vê-lo chorar... Seria o triunfo total. Era isso,
ele devia estar chorando agora na diretoria! Não teve dúvida:
- Professor, posso
ir na licença?
- “Na licença?” De
novo, Manuel!? Assim não dá!
- O senhor que
sabe! Vou peidar aqui mesmo, então!
- Vai, vai, vai! -
disse entre as risadas dos outros meninos - E vocês silêncio aí!
Correu em direção à
sala do diretor. A porta estava fechada. Abaixou a cabeça e, no momento que ia
encostar o ouvido na porta, ela se abriu.
- Pois não? – disse
o diretor
- Ah, é... Não tem
ninguém aí com o senhor?
- O que você está
aprontando dessa vez, Manec... digo, Manuel?
- Não é nada, só
estava passando...
Correu de volta à
sala, o menino não estava lá. Será que tinha fugido? Mas e ele ia deixar as
coisas na sala? Dane-se! Se ele tivesse fugido, melhor! Podia dormir tranquilo
com a sua consciência de agressor psicológico. Vitória!
Mal sentou-se e o
sinal tocou, informando o fim da aula. Todos os alunos levantaram-se
apressados, nem repararam que o colega ainda não havia voltado. Apenas o Maneco
ficou na sala, aguardando.
- E essa mochila? -
perguntou o professor.
- É do Raulzinho,
deixa que eu entrego a ele.
O professor
hesitou:
- Ele deve estar
aqui na escola ainda... Pode ir, Manuel, eu vou procura-lo.
Andou por quase
todas as dependências da escola e não encontrou o menino. Afinal, devia ter ido
embora. Moleque mais maluco. Melhor era deixar as coisas dele na sala do
diretor, depois alguém entregava. Ia passando pela cozinha, quando a servente o
interrompeu:
- O senhor terminou
com a faca?
- Que faca?
- Pois o senhor não
mandou aquele menino magrinho vir pegar uma faca emprestada aqui?
- Eu não! Você deu
uma faca pro Raul?
Não houve tempo
para a mulher responder, uma algazarra se fazia no portão e todos os que ainda
estavam na escola iam correndo para lá. O professor jogou a bolsa do Raulzinho
no chão e saiu também correndo em direção ao portão. Antes mesmo de ultrapassar
o portão, pôde ver o que acontecia. Cinco ou seis meninos chutavam o corpo já inconsciente
do Raulzinho, jogado no chão da frente da escola. Correu mais rápido, gritando:
- Parem, parem com
isso, parem com isso já!
Um dos alunos o
segurou forte, impedindo-o de chegar até os agressores, berrando:
- O senhor não viu
o que ele fez? Não viu?
Só então o
professor pôde voltar-se e ver, a um canto, o corpo do Manecão caído com uma
faca encravada no peito.
Foi o primeiro e
último ato de valentia do Raulzinho.
Por: Fernando Lago. Texto vencedor da versão interna do II Prêmio Castro Alves (2018) da Academia Teixeirense de Letras - categoria crônica.