24 de fev. de 2011

A honra do alfaiate




Diz que foi no reinado de Dom Augusto, nos idos de algum século destes que já se foram,[1] em algum destes reinos semi-medievais que um dia na história acabariam caindo na terrível e inevitável fossa da democracia representativa. Mas foi muito antes de isso acontecer.

Sem quaisquer delongas e na mais paulificante cara de pau, o príncipe Berlusquino, herdeiro do trono, visitava sem pudor a esposa de um jovem alfaiate que confeccionava as roupas de todos os corpos da nobreza.[2]

No princípio, a fidedigna senhora, de coração puro que nem cachaça da roça, acreditou piamente, e sem dar nem um piu, que era verdadeira a dita necessidade do príncipe de amigos, e que era coincidência o fato de só tentar sanar essa carência em momentos que o seu esposo estava alfaiateando lá no Palácio da Planície, onde moravam o rei e seus reizinhos. 

Daí que toda a inocência da senhora do alfaiate foi-se pelo ralo – embora os ralos e os banheiros provavelmente não tivessem sido sistematizados pelos especialistas em banheirologia – quando sentiu pela primeira vez a mão esquerda[3] do príncipe tocar-lhe o colo, no sem querer mais intencional que já se viu na mão esquerda de um membro da família real.

No entanto, para evitar corte de relações profissionais entre a nobreza e o marido, a bela mulher não denunciou o fato ao dedicado alfaiate, que continuava alfaiateando as roupas do rei e dos nobres mais nobres do império. Mas passou a policiar rigidamente os movimentos do “amigo” príncipe e a responder friamente às suas perguntas. Decerto contava que a frieza expulsasse de maneira mais humana o desumano príncipe da sua modesta casa.

Um belo dia, no entanto,[4] o príncipe Berlusquino embarafustou-se pela casa adentro, convidando ardentemente a casta senhora ao prazer de ser concubina de um príncipe tão belo e tão viril e tão rico e tão poderoso quanto ele. De início ela não pode negar, porque os beijos nada românticos do príncipe a sufocavam e emudeciam, e isso não é figura de linguagem! Nada, porém, que um daqueles clássicos chutes entre as pernas não resolvesse, mecanismo que não fora inventado naquele momento, mas que, como ninguém nunca patenteara, podia ser usado livremente, como ainda o é, até os nossos dias.   

Diante deste ato brutal, nada restou à bela senhora senão expulsar de sua casa o príncipe, a bassouradas; e comunicar ao marido a porcariada em que estava metido. E inclusive, sugeriu que os primos abandonassem o time de penabola, um esporte muito praticado no reino, que era financiado diretamente pelo príncipe.

Mas isso, porém, não bastou ao jovem e indignado alfaiate.

“Fosse no século XXI, meu amor, eu até deixava passar. A gente entrava com uma ação na justiça, danos morais, essas coisas e tudo o mais. Mas aqui, em terras de reino e em tempos semi-medievais, o negócio tem que ser resolvido é na espada."

E lá se foi às portas do palácio, desafiar o príncipe para um duelo. Este, que não podia aparecer como um impiedoso destruidor de lares na mídia[5] disse ao “amigo alfaiate que tanto já me vestiu” que não queria ferí-lo e, portanto, achava mais prudente não descer para brigar até a morte com ele no jardim, ao portão do palácio. Além disso, andava muito ocupado. A vida de um futuro rei é muito agitada, não tinha tempo para ficar duelando por aí.

Mas honra não se compra em quitanda. Depois de ruminar consigo mesmo por horas, na porta do palácio, andando pra cá e pra lá, o alfaiate não se conteve e pulou o muro da propriedade, marchando em direção à varanda, onde, tranquilamente, o velho rei Augusto e o jovem príncipe Berlusquino tomavam o chá das cinco da tarde.[6] Ao ver o jovem costureiro com uma agulha mil vezes maior que a habitual na mão, o rei e o príncipe gritaram, em uníssono[7] brado: guaaaaaaaaaaardas!

Imediatamente uns dez guardas foram de encontro ao corpo raquítico do alfaiate e o mataram, sem se lembrar que o uniforme que vestiam fora idealizado por ele.

MORAL: Quando um não quer, realmente dois não brigam.


Fernando Lago Santos – 23 de Fevereiro de 2011


[1] Séculos idos, portanto.
[2] Um dia ele inventou uma roupa invisível, mas foi em outro reino e em outra história totalmente distinta.
[3] Ou teria sido a direita? Mas nessas horas ninguém repara bem nisso.
[4] Todos os dias em histórias de reinos são belos.
[5] Na época, um jornaleco de quatro ou cinco páginas.
[6] Embora o alfaiate, detalhista, tivesse conferido no relógio que ainda faltava uns quinze minutos para as cinco, mas isso é detalhe dispensável.
[7] Fruto de ardorosos ensaios vocais.

14 de fev. de 2011

Somos duas crianças

Imagem http://migre.me/3Sue2 (Blog "Meu aconchego")


Somos duas crianças
De vinte anos de idade
E não temos nada certo
Só a incerteza

Olhares entre olhares
Significando nada
Significando tudo

Palavras inaudíveis
Sons do coração

Te amo e me amas?
Não sei e tu não sabes
Somos duas crianças
De vinte anos de idade

Fernando Lago Santos – 31 de Julho de 2009