28 de jul. de 2012

Tempus fugit (4)

            Última parte... 

- Oi! – disse o rapaz.

- Oi! – disse a menina de cabelo enrolado.

- Queria te pedir desculpas por aquela hora...

- Que hora?

- De manhã cedo, quando eu te perguntei a hora.

- Você deve estar me confundindo com alguém...

- Não estou nada! De manhã, era umas sete e meia e eu te perguntei a hora e depois saí na correria...

- Amigo, SÃO sete e meia agora, se essa é mais uma daquelas cantadas idiotas que vocês usam com as meninas na rua, saiba que eu não aprecio!

- Não, não é cantada nenhuma não! Que horas você disse que são?

- Me poupe!

- Por favor, menina! Estou falando sério!

A moça de cabelo enrolado deve ter acreditado, porque em três segundos estava retirando o celular da bolsa, abrindo o visor e preferindo os mesmos números que o nosso rapaz ouvira há algumas horas atrás, quando era manhã e ele achava que devia ser tarde.

- Você só pode estar brincando, não é?

- Não, olha só, são 7:33 – disse a moça mostrando o visor do celular.

- Meu deus do céu!

- O senhor está atrasado?

- De certa forma, estou adiantado...

- Não estou entendendo... O senhor está preocupado por estar adiantado?

- Você não entenderia... Não precisa me chamar de senhor, não devemos ter mais de cinco anos de diferença.

- Desculpa – sorriu a moça de cabelo enrolado.

- É uma foto muito bonita essa do celular.

- Obrigado, eu não saio muito bem em fotos.

- É que as câmeras não conseguem reproduzir fielmente tanta beleza.

A moça já tinha dito que não gostava dessas cantadas, mas não conseguiu resistir a esta.

- Um prazer conhece-la, tenho que apressar o passo. Você é realmente muito bela.

Entrou no conhecido bar, olhou a hora no relógio de parede, sem perguntar nada ao dono do bar. Como não tinha notado a presença daquele objeto de ponteiros ali? Seria muito mais desesperador saber desde aquele momento que o problema não era nos celulares, e sim em todos os relógios do mundo, mas pelo menos adiantaria a coisa toda. Agora, ia muito mais além. Aparentemente o tempo parara, e apenas para ele. O que estava acontecendo?

- Por favor, me serve uma gelada aí. E nem quero saber de conselhos, sei que daqui a pouco vou entrar no trabalho. Foda-se todo mundo!

Tomou a cerveja diante dos olhares curiosos dos clientes fieis, daqueles que não faziam nada a não ser beber o dia todo. Aliás, é fato curioso o leitor ainda não ter protestado diante dessa situação de bares abertos às sete e trinta e sete da manhã. Mas nesse país, como no nosso, apesar dos inúmeros problemas que se enfrentava, sempre havia um trocadinho pra beber, fosse a hora que fosse. E os dois donos de bar eram espertos o bastante para perceber isso.

Após terminar a cerveja e pendurar na conta, lembremos que ele gozava de certo prestígio nesse bar devido às noites em que ali gastava, seguiu em direção ao bar do homem de cara amarrada. Já entrou gritando:

- Manda uma lora gelada pra cá, que hoje o bicho vai pegar!

- Não é cedo demais para um rapaz tão jovem beber? – disse o bêbado de antes, aquele que tinha sacado o celular na primeira tarde que ainda era manhã.

- O que é que essa bicha tá querendo, gente? – disse o rapaz, provocativo. Não tinha nada a perder. Ou estava dormindo, ou estava louco. Em ambos os casos, não se machucaria.

- Olha, olha, olha! O franguinho quer caçar confusão, é?

- Franguinho? Daqui a pouco mostro o pinto pra sua mãe.

- Ah, agora foi demais! Eu vou quebrar a cara desse filho da puta!

- Eu não sou seu irmão! Vem que eu to esperando, viado!

O bêbado avançou correndo com um taco de sinuca na mão, o rapaz agarrou uma cadeira para se defender, estavam prontos para entrar em confronto quando ouviram um disparo de pistola.

- Ninguém vai brigar aqui não! - o homem de cara amarrada tinha agora a cara mais amarrada ainda – saiam do meu bar agora, antes que eu meto bala no bucho de um aqui.

O rapaz saiu. O bêbado atravessou para o outro lado da rua. Nenhum dos dois tinha ânimo para continuar a contenda. Nesse instante o colega de trabalho parou o carro prata na porta do bar, dizendo as mesmas coisas que disse antes.

- É, foi puta mesmo...

Tudo igualzinho. Mas dessa vez mandou o supervisor tomar no cu mais cedo do que antes. Nem sequer ligou para a empresa fornecedora, o próprio supervisor que ligou, sem muito pestanejar. Quando deu a hora do almoço, lá estava ele na mesa 35. A mesma proposta de antes, mas dessa vez sem deixar dúvidas:

- Em um mês, camarada, em um mês você assumirá o cargo.

- Pode ser – disse o nosso rapaz – se você consegue, qualquer idiota pode conseguir, não é?

O supervisor caiu na risada. Como era bem humorado o futuro supervisor da nossa empresa!

Cinco horas, nem um minuto a mais. Passados os quinze minutos, lá estava ela, a moça de cabelo enrolado. Ele adiantou os passos, quase correu, parou à sua frente.

- Com licença, desculpa interromper a sua linda caminhada assim dessa forma. Mas você poderia tirar o seu celular da bolsa e confirmar pra mim se agora são 7:40 da manhã?  

- Da noite é que não podia ser – sorriu a moça.

- Você tem o sorriso lindo.

- Obrigada – disse a moça já com o celular na mão – o senhor errou, são 7:33.

- Ah, verdade! 7:40 era no celular do dono do bar...

- Que dono, de que bar?

- Vem comigo que te mostro.

E pegando familiarmente na mão da moça de cabelo enrolado o rapaz caminhou até o bar em que era conhecido. E naquele dia não foi trabalhar.


Fernando Lago - Julho de 2012 

25 de jul. de 2012

Tempus fugit (3)

          Terceira Parte



Mal deu tempo de pensar, a água corrente da torneira veio com tudo na sua cara. Enquanto era carinhosamente despertado da sua falsa embriaguez pela mulher do café, uma senhora sem muita beleza, mas extremamente amada por todos os funcionários daquela empresa, como é típico das mulheres que servem café em todas as empresas do universo, o rapaz ia recobrando o equilíbrio, calculando tudo direitinho... Não podia ser!

Lembrava-se bem. Acordara às seis e meia. Tomara banho, escovara os dentes, uma média e um pão com mortadela no café da manhã e pronto: saiu de casa preparado para a jornada cotidiana. Depois de contemplar o caminhar matutino da menina de cabelo enrolado, igual a tantas outras manhãs, entrara no trabalho, como invariavelmente fazia todos os dias às sete horas e cinquenta e oito minutos da manhã, começando a operar no seu escritório exatamente às oito horas, do mesmo jeitinho que sempre fazia: nem um minuto a menos, nem um minuto a mais, pelos motivos que já conhecemos. Foi interpelado, logo que se sentou à sua mesa, pelo supervisor imediato que veio lhe falar dos relatórios da ultima grande operação de compra que fizeram, alguém da empresa fornecedora tinha cometido um erro e isto, naturalmente, era responsabilidade dele, que cuidava das operações de compras de estoque. Calmo como sempre, ele assumiu a responsabilidade e comprometeu-se em ligar para a pessoa com quem negociara na primeira oportunidade que tivesse. Como era natural da personalidade de pessoas que gostam de abusar da personalidade calma de outras pessoas, o supervisor emendou, como se não tivesse entendido o comprometimento do funcionário: “Pra hoje, hein! Pra hoje!” Após tomar todos os procedimentos de praxe para iniciar seu trabalho, nosso rapaz fez a ligação, foi firme com a pessoa, sem ser mal educado, deixou claro sua posição e desligou o telefone satisfeito. No intervalo de meia hora reservado para o almoço, comeu bife com batatas na mesa 35 da cantina da empresa e colocou ketchup nas batatas, deixando, por uma distração, um bocado cair por cima do bife, coisa que ele odiava. Ketchup era feito para massas, não para carnes, ora essa! Coisa que muita gente discordava, mas era sua opinião. Depois de satisfeita a fome, sentou-se, leu as notícias do futebol, seu time ia mal no campeonato... Três a zero em casa é dose! Arrotou, tomou água, foi ao banheiro, voltou ao seu escritório. Recebeu a ligação do supervisor dizendo que agora estava tudo ‘oquei’ com a operação de compra. Às cinco, saiu do trabalho e viu a moça de cabelo enrolado...

A senhora do café trouxe uma toalha limpa, ele enxugou o rosto e tomou o copo de café bem quente. Agradeceu, parecia outro.

- Não vá ficar mal acostumado – sorriu a senhora do café. Ele sorriu também e seguiu em direção à sua mesa.

O supervisor já esperava impaciente, não falou nada em descontar os dois minutos de atraso do salário, isso era lá com a administração, foi logo direto ao ponto: o erro da empresa fornecedora.

- De novo!? – exclamou o nosso amigo.

- Então já tinha acontecido antes? Que absurdo! Vamos ter cancelar o contrato com essa empresa. Isso é responsabilidade sua! Trate de corrigir isso pra hoje, pra hoje!

- Mas ainda ontem nós não...

Começou a entender o que se passava. Devia ser um sonho. Nossa! Estava com a memória boa, hein! Um sonho repetindo o dia, quase exatamente como tinha acontecido! Muito interessante, pra ele que sempre tinha sonhos confusos... Vamos embarcar nessa história, pensou. E retirou o telefone do gancho discando os números do telefone da empresa com quem negociara a compra dos produtos. Pediu para falar com o fulano de tal e foi logo mandando ele tomar no cu. Queria que ele corrigisse o erro imediatamente ou nunca mais negociaria com ele. Que porra era aquela? Lembrou que empresa como a dele, o fulano, existiam aos montes e que para trocar era daqui pr’ali... Depois de receber o pedido de desculpas acanhado do sujeito, desligou o telefone segurando o riso. Do outro lado, o fulano de tal que estava acostumado com o jeito educado do nosso rapaz dizia consigo: deve estar tendo um dia ruim...

Sentiu sono... Não se lembrava de ter dormido. Mal conseguia entender como poderia estar sonhando, tão conscientemente. E se fosse um sonho acordado? Ou pior, se ele estivesse louco? Dane-se! Ele precisava mesmo fazer alguma loucura. Era a ocasião perfeita.

Não demorou muito ao supervisor lhe telefonar.

- O que você fez com o fulano da empresa fornecedora, rapaz?

- Fui só um pouquinho duro com ele...

- Um pouquinho duro? Em dois minutos ele resolveu o problema! Cara, que desgrama foi essa?

- Mandei ele ir tomar no cu. E vou fazer o mesmo com você daqui a pouco se não parar de me encher o saco!

- Calma, rapaz! Soube que você está tendo um mal dia hoje... Mas não se preocupe, isso vai ficar entre nós.

- Agradeço, viado!

E desligou o telefone na cara do supervisor. Ao contrário do que pensou, não foi mais incomodado por ele durante o resto do dia. Só o viu de novo na hora do almoço, quando ele sentou-se à sua frente, na mesa 35. Ficaram em silêncio por alguns instantes, até que o supervisor começou a falar:

- Sabe, não é nada garantido. Mas posso te colocar na cola de uma parada que vai rolar aí pro mês que vem...

- Cara, vai direto ao assunto, por favor!

- Certo, também gosto de objetividade! Eu vou sair da empresa e estou pensando em te indicar pro meu lugar na supervisão.

- Opa! Estou nessa! Posso saber por que isso agora?

- Você hoje mostrou que tem atitude...

- Que merda!

- O que? Isso te incomoda?

- Não é isso! Deixei o ketchup cair no bife de novo!

Às cinco horas em ponto, lá estava o nosso rapaz de novo, exausto, saindo de mais um dia de trabalho. Mas que sonho grande era esse? Não podia ser um sonho! Tinha certeza agora: estava louco! Mas a certeza foi embora quando se atinou de uma coisa. Nenhum louco pode ter tanta certeza de estar louco. Depois replicou a própria afirmação: como poderia saber disso se ele mesmo nunca tinha ficado louco antes? Seu pensamento ia perdido nessas coisas quando percebeu, caminhando à sua frente, a menina de cabelo enrolado. 

Fernando Lago - Julho de 2012

21 de jul. de 2012

Tempus fugit (2)

           Segunda parte


Imagem: internet 

Perturbado, o rapaz entrou no primeiro ponto de comércio que lhe apareceu na frente. Um bar, como não é de se surpreender, visto que é a coisa mais fácil de se encontrar em todas as cidades do país em que ele morava que, ao contrário do que vocês provavelmente têm pensado até agora, não é o nosso, embora seja muito, muito parecido – inclusive no sistema de governo, uma democracia maravilhosa e sem máculas. Na rapidez das atitudes, nosso amigo tinha até esquecido que aquele estabelecimento lhe era familiar das sextas feiras, especialmente as de início de mês, em que ele, solteiro de nascença, dispendia uma bela porcentagem do seu salário reservada exclusivamente para esse fim.

O dono do bar o olhou com estranheza e familiaridade, o que parecerá aos leitores espertos uma tremenda contradição da parte de quem conta a história, podendo mesmo acusar a este de não estar narrando com clareza os fatos, mas tudo se explica em dois tempos. A familiaridade do dono do bar, que era também atendente e garçom, se deu, naturalmente, por conhecer de muitas sextas feiras o rapaz que ali acabara de entrar. Quanto à estranheza, veio justamente por não ser aquele dia uma sexta feira. A terceira coisa – se não dissemos que havia uma terceira coisa, fiquem agora sabendo – explica-se pela fala do comerciante de alegrias engarrafadas, que recebeu o cliente de braços abertos dizendo:

- Ora vejam, o senhor por aqui a essa hora da manhã!

A fala do dono do bar, embora acolhedora, perturbou ainda mais o espírito do nosso rapaz. Manhã? Como assim manhã?

- Por acaso, são que horas agora, senhor?

- Ora, agora? – a mesma pergunta sem razão de existir e igualmente sem resposta, porque sempre que a faziam, o próprio questionador já emendava, como fizera a menina de cabelo enrolado e ora fazia o dono do bar, consultando o celular da mesma forma que a outra o fez:

 – Agora são 7:40.

- Mas que absurdo!

- Tem razão... O tempo passa que a gente nem vê. Mas é bem melhor, se me permite a intromissão, que o senhor não tenha tempo de beber, já que vai entrar no trabalho em instantes...

- Tem razão o senhor. Tenha um bom dia aí com as seus bêbados e as suas garrafas.

Saiu e entrou no próximo estabelecimento que também era um bar, porém não conhecido, com um dono de cara amarrada – não amarrada, assim, como que atada com uma corda de sisal ou outro tipo de corda qualquer, mas amarrada no sentido de cheia de marra. Esta marra, se nos permite ir a fundo nessa história, se dava justamente pelo fato de que, embora o bar não fosse conhecido do nosso amigo, este era muito conhecido do bar, representado, é claro, pelo seu dono. Todas as sextas feiras, especialmente aquelas em que recebia a parte que lhe cabia daquele latifúndio, o rapaz era visto festejando no outro bar, cheio de amigos, de cachaça e de dinheiro para gastar, já que não tinha nenhuma esposa que tomar conta e, caso lhe faltasse alguma coisa em casa, ninguém para reclamar da falta de assistência no orçamento familiar. Mas, apesar disso, era controlado e não gastava além da referida cota reservada para os divertimentos da sexta. O que despeitava o dono do bar era o fato de o rapaz escolher o seu concorrente e não a ele, sem que nem por que, já que a qualidade de ambos os bares era a mesma.

Mas isto não lhe importava ao rapaz, que só queria saber que mistério era esse de três relógios estarem marcando uma hora matutina quando o dia já avançava o turno vespertino, quase pronto para entrar no noturno. Devia ser algum desses novos vírus que andavam a afetar os celulares mais modernos. Isso que dá essa onda de evolução tecnológica. Entrou no bar do homem de cara amarrada e, sem bons dias ou boas tardes, já foi logo perguntando:

- Alguém poderia me informar as horas?

Com que decepção o homem de cara amarrada deve ter ouvido isso. De repente, o sujeito que desprezara o bar dele por tantas sextas feiras agora entrava por aquela porta e, ao invés de cumprimentar, como é de se esperar de um cavalheiro, mesmo que num bar, e logo em seguida ao cumprimento pedir uma dose de cachaça, uma taça de vinho ou uma garrafa de cerveja, simplesmente entrava pela porta estreita, que não era a do evangelho, e gritava pedindo que lhe informassem as horas. Mas que desaforo! Que heresia para com o código de conduta dos bares do mundo!

Um sujeito levantou-se educadamente, sacou alguma coisa do bolso. O que levou o nosso amigo ao desespero.

- Não, não, não, não, não!

- Calma, meu senhor – disse o bêbado, numa lucidez inacreditável – é só um celular.

- Justamente, esse é o problema! – disse o rapaz, que apesar de ter acabado de entrar no bar parecia ser o menos sóbrio no local – no celular não, por favor! Alguém não tem um relógio de pulso?

- Que besteira, é a mesma coisa – tornou o bêbado.

- Não, obrigado, realmente prefiro um relógio-relógio mesmo – explicou o rapaz.

- Mas é atualizado via satélite! – insistiu o bêbado.

- Enfia esse celular, amigo! Já falei que não quero saber! – disse o rapaz, deixando a placidez de lado.

- Vamos acalmar, vamos acalmar... – gritou o sujeito de cara amarrada de lá de traz do balcão, abrigado entre as garrafas e porções.

- Por favor, gente! Eu só quero saber a hora, e que não seja de um celular, por favor!

- Manda esse filho duma égua sair daqui agora – disse o bêbado do celular, dirigindo-se ao homem de cara amarrada – se não, não respondo por mim.

Ironia, pensou o homem da cara amarrada enquanto acompanhava o nosso amigo até a calçada, na primeira vez que o farrista das sextas feiras de pagamento entrava em seu bar, ele tinha que expulsá-lo. Era ocasião de tomar ainda mais raiva da cara do rapaz, mas aconteceu o processo contrário. O que lhe invadiu foi uma certa simpatia pelo jovem, teve vontade de perguntar o que estava acontecendo na sua vida, se fora traído pela namorada, esposa ou romance informal, forma menos corrente de se referir a estes flertes que duram muito ou a estes namoros que duram pouco. Mas não teve tempo para tanto. Era o exato momento em que um carro prata parou quase que em cima dos quatro pés que ali estavam na calçada, os dele e os do rapaz. O vidro da janela dianteira desceu e surgiu ali um rosto bonachão e conhecido do nosso amigo. Era um companheiro de trabalho.  

- Puta que pariu, rapaz! Você está bebendo numa hora dessas! Entra logo aqui, se não vai chegar atrasado no trabalho!

Sem entender absolutamente nada do que estava acontecendo, o nosso sujeito que já demonstrava no rosto algumas alterações psicotrópicas, embora não tivesse ingerido quaisquer substâncias com esse efeito, entrou no carro sentando no banco do carona, uma informação óbvia, visto que o banco do motorista já era ocupado pelo seu colega de trabalho, que não confiaria o seu carro a ninguém, muito menos alguém que estivesse aparentemente bêbado.

- O que aconteceu, rapaz? Passou a noite na gandaia, é?

- Que horas...? – balbuciou o rapaz.

- Que horas o que?

- Que horas são?

- Quase oito, malandro! Hora de trabalhar. Vamos entrar pelos fundos pro gerente não te ver assim, a gente toma um café bem forte e pimba! O que há com você, cara? Em pleno meio de semana desse jeito! Isso só pode ser coisa de puta.

Como estava tendencioso a confirmar tudo o que ouvia, o rapaz apenas falou, baixo:

- É, foi uma puta mesmo... 

Fernando Lago - Julho de 2012 

19 de jul. de 2012

Tempus fugit

          Primeira parte


Cruzou com a moça de cabelo enrolado na altura da faculdade pública que ficava no caminho para o seu trabalho. A mesma moça que ele via todos os dias, invariavelmente, às sete e meia da manhã, provavelmente a caminho de alguma atividade universitária. A moça era a mesma, jovem e bonita, os mesmos cabelos enrolados balançando por sobre os ombros, um restinho caindo pelas costas abaixo e os olhos castanhos meio perdidos num horizonte em que só se via prédios. É certo, a moça era a mesma, o horário é que era estranho. Já não era sete e meia, muito menos era manhã. Pelo contrário, passava das dezessete horas. Que raios aquela moça estaria fazendo ali àquela hora? Teria ela uma jornada dupla de estudos na faculdade? Será que foi reprovada em algum componente do currículo e precisa repor as aulas no horário oposto? Ocupar-se-á ela de algum estágio ou bolsa de pesquisa naquela instituição? A essas perguntas, se dirigidas à moça de cabelo enrolado, provavelmente caberia apenas uma única resposta que é, contraditoriamente, outra interrogação: que tem o nosso sujeito que ver com isso?

Diminuiu os passos para ficar mais tempo contemplando a silhueta da moça que andava compassadamente. Como é praxe masculina, prendeu um pouco o olhar na sua bela traseira, que movia-se de um a outro lado a cada passo que dava a moça de cabelo enrolado. As curvas, os passos, tudo parecia uma dança. Um requebrar de cadeiras para ninguém botar defeito. O rapaz aumenta o passo, quer ficar mais perto dela e consegue. A moça do cabelo enrolado continuava caminhando impassível, sem sequer voltar a cabeça para ver quem era o dono dos passos afoitos que vibravam na calçada. Nem mesmo alterou a marcha dos seus próprios passos. Cidadezinha tranquila, rua clara e aberta, há muito não se tinha notícia de assaltos por ali, o que explica a placidez da moça de cabelo enrolado.

Caminhando bem perto, o rapaz sentiu o seu perfume, comtemplou hipnotizado o balançado do seu corpo e teve vontade de sentir sua pele amorenada bem de perto. Teve uma ereção, pensou em roubar-lhe um beijo, mas já estava no seu limite. Diminuiu os passos, respirou fundo e tentou se acalmar. Não era um tarado qualquer.

A faculdade se aproximava, a moça de cabelo enrolado ia se afastar. Que era da faculdade, não havia dúvidas. Além do nome do curso figurando nas costas da camisa, a bolsa típica de universitária a tiracolo. E não esqueçamos que havia muito tempo que o nosso caminhante a contemplava seguindo em direção à faculdade, sempre no mesmo horário de sete e meia da manhã. É certo que, para chegar à conclusão de que se tratava mesmo de uma universitária, ele próprio a vira atravessar o portão da faculdade sei lá quantas vezes.

Apertou o passo e ficou ao lado dela, caminhando agora no mesmo ritmo. O que não andava em ritmo nenhum era o seu raciocínio, que tentava pensar em algum meio de puxar conversa com a beldade universitária que há tanto tempo seus olhos contemplavam de longe, movido, dessa vez, muito mais pela curiosidade do fato de a moça estar ali em horário diferente. Olhou para o pulso e lhe ocorreu a ideia mais batida desde que se começou a contar as horas.

- Oi! Poderia me informar que horas são agora?

- Agora? – repetiu a moça do cabelo enrolado, uma pergunta boba, pois que interessaria para alguém perguntar que horas foram há dez minutos ou que horas serão daqui a meia hora? Desnecessário. A moça do cabelo enrolado retirou o celular do bolso, respondendo:

- Agora são 7:33.

- Da noite???

Outra pergunta idiota, visto que estava claro e, salvo o sol tivesse perdido a hora da sua troca de turno com a lua, noite é que não podia ser. A moça de cabelo enrolado achou a pergunta tão obvia que só viu ocasião de sorrir, achando que era alguma brincadeira do rapaz. Mas ao olhar diretamente o seu rosto viu que não tinha graça a desorientação que se apresentava nos seus olhos.

- Da manhã... Por quê?

- Nada, nada – disse o rapaz. Preciso apressar o passo. Muito obrigado, você é uma moça realmente bela.

A moça de cabelo enrolado sorriu agradecendo, sem entender muito bem o que tinha acontecido com o rapaz. “Ou é louco ou está muito atrasado para algum compromisso sério.” Pensava consigo, o que é um pleonasmo óbvio (e a própria expressão “pleonasmo óbvio” é, em si só, um pleonasmo óbvio): desde que o homem se ocupa na atividade de pensar, ele o faz apenas consigo mesmo, pois, ainda que ele passe a expressar esses pensamentos em palavras audíveis, já não estará pensando e sim falando.

Da mesma forma, era apenas consigo mesmo que o rapaz pensava que aquela moça só poderia estar maluca. Ela e o relógio do telefone celular, o que, aliás, também ele trazia ao lado, bem à mostra, em uma daquelas antigas capas que a gente pregava na cintura e que hoje em dia já está fora de moda. (Pensemos, portanto, que, ou o nosso rapaz não se preocupava muito com essas coisas de moda, ou essa história se passa numa época em que ainda era moda andar com o celular à mostra na cintura). Mas de nada nos importaria esse detalhe senão para ressaltar o quão ridículo o rapaz se sentiu ao dar conta do fato. Se também ele tinha um relógio bem ali na facilidade de sua cintura, por que interromper a marcha pacífica da moça de cabelo enrolado, fazê-la abrir a bolsa, retirar o aparelho, abrir o visor e olhar a hora, se ele mesmo poderia fazer isso em segundos? Com toda a certeza, pensava o rapaz, a menina tinha percebido o aparelho figurando ali na cintura, e é mais do que provável que ela tenha percebido que o que o rapaz queria mesmo era um contato, algum pretexto para puxar uma conversa. Daí, concluiríamos nós, a sua reação quando o sujeito simplesmente se despediu, apressando o passo, depois de ter tido sucesso na tentativa.

Mas por que raios teria ela visto 7:33 da manhã quando deviam ser, no mínimo umas 5:15 da tarde? Como poderia ele saber que era exatamente esta hora? Ora, saiu, como todos os dias, às cinco em ponto do trabalho, nenhum minuto a mais, porque não ia dar dinheiro de graça praqueles putos; nenhum minuto a menos porque os putos eram tão putos que descontariam no salário os minutos, bem calculadinhos. Demorou, do caminho que separa a empresa do ponto exato em que viu a moça de cabelo enrolado, cerca de 15 minutos. A pé, porque tinha a maior preguiça de esperar ônibus e além do mais, esses ônibus dessa cidade são uma porcaria desconfortável. Assim, só poderia ser, agora, cinco horas mais quinze minutos da tarde; talvez mais, porém nada menos que isso. E, confirmando a facilidade que seria ele mesmo ver as horas num caso de real necessidade, meteu a mão na cintura e sacou o telefone celular, que não era do mesmo modelo do aparelho que a universitária sacara da bolsa há alguns minutos, não necessitava de abrir o visor, as horas já se mostravam ali, logo de cara: 7:37.

Mas como? Todos os celulares do mundo tinham endoidado!

[Continua....]

Fernando Lago - Julho de 2012

7 de jul. de 2012

Ave!



Para Arianne Carla Barromeu

Como uma ave, seu olhar passeia
Perdido na estrada do infinito
Quando se encontra com outro olhar que o rodeia
Passa a enxergar-se em um mundo mais bonito

Doce sorrir que te acompanha aonde vais
Sem perguntar qual itinerário que o espera
Sem perceber que o tempo desacelera
Quando a candura do seu rosto se refaz

Como é divina a expressão do seu sorriso
Como é gracioso o seu jeito de menina
E a imagem que refletes, que voraz!

Contemplar-te, assim tão linda, traz uma paz
Que acalma e desconforta o juízo
Equilibra e ao mesmo tempo desatina

Pois tão doce criatura traz em si
Um pedaço de um mundo que é fantástico
Que nos tira do real, do rotineiro
E faz sonhar com tudo embelezado

Mas ao voltar os olhos para o mundo
O real é ao sujeito revelado
E ele perde o seu sonho como plástico
Que se estoura num momento sorrateiro

Mas há um jeito lindo de manter
O sonho vivo em mente, e com esperança
É só guardar a imagem do sorriso
Da moça sempre dentro da lembrança. 

Fernando Lago – 07 de Julho de 2012

1 de jul. de 2012

O sorriso de Nanã



O sorriso de Nanã – que coisa triste!
É alegre quando não estou por perto
Eu não tenho talismã e fico certo
Que a paixão somente do meu lado existe

E Nanã, por sua vez, nem imagina
Que sabê-la tão distante me entristece
Ignora-me talvez, nem lhe apetece
Conhecer que o seu rosto me fascina

Mesmo assim, sob a luz fraca que alumia,
É a Nanã que eu dedico essa poesia.

Fernando Lago – Fevereiro de 2012