27 de nov. de 2012

De repente

Imagem: Filme Pickpocket (O batedor de Carteiras), Robert Bresson.  

De repente, aquela voz doce cortou o mundo de pensamentos em que eu estava absorto:


- Quem foi que velou?

- Como é que é? – fiz, como se estivesse sendo despertado de um leve cochilo.

- A bezerra – disse ela com um meio sorriso.

- Ah! – fiz entendendo e entrando no espírito da piada – sim, uma fatalidade! Tão jovem...

- O senhor não perde essa mania de ficar pensando na morte da bezerra, hein!

- Perdão?

- Não se lembra de mim, pelo visto.

- Evidentemente...

- Felícia.

- Felícia, Felícia... É um bonito nome, me remete a algumas conhecidas, porém nenhuma com o seu rosto.

- Participei de uma oficina de redação que você deu...

- Ah... Mas a única oficina de redação que dei foi há... é sério?

- Dez anos. Seríssimo. Como pôde se esquecer de mim?

- Estou me perguntando a mesma coisa...

Na verdade, durante os beijos que trocávamos dali a algumas horas, indo em direção ao Motel Califórnia, eu me lembrei perfeitamente de quem ela era. À época, uma ninfetinha assanhada e magra, sem muitos atrativos, semi-adolescente. Dizia-se apaixonada por mim e, certa vez, tive que desviar a mão dela que ia, digamos, em direções não muito confiáveis. Outro dia, ao despedir-se de mim ao fim de uma aula, beijou-me no rosto com tanto fervor que arrancou exclamações da turma. Ela, nas pontas dos pés, quase não me alcançava a face. Agora estava com o dobro do tamanho, sendo que boa parte do seu metro e setenta era de pernas, lindas, naquele vestidinho preto (indefectível).

Sim, eu lembrava dela, mas continuei fingindo que não, até para mim mesmo. Não quis desfazer o encanto de a estar conhecendo de novo.   

Fernando Lago – Novembro de 2012 

14 de nov. de 2012

Conselho

Imagem: Internet 


Parei pra refletir sem ter espelho
Ouvir de mim o meu próprio conselho
Agora vou buscar me redimir
Dos erros que eu nunca cometi

Fui tonto, tanto tempo
Inconsciente
Buscando uma paixão indiferente
Preciso de um gole de aguardente
Pra acordar do sonho de ser eu

É tanta ilusão, tanta cilada
É tanto tudo tão cheio de nada
É tanta vida morta, meu senhor
Coloca mais uma dose, por favor

Eu vou embora para a capital
Eu vou sair do sul, porque tô mal
Acho que, se pensar, aqui já deu
Ou é essa cidade ou sou eu

Domingo próximo ela vai casar
Ouvi dizer que o noivo é de BH
Fiz um negócio mal em Mucuri
Traz a garrafa toda, bota aqui

Não sei a quantas anda meu processo
Não sei qual a estrada pro sucesso
Teixeira tá bonita, tem progresso
Mas tá faltando eu me encaixar

Amigo, traz a conta, já tá tarde
Eu já embebedei só de saudade
Acho que vou pagar só a metade
Pendura o resto em nome da amizade
Depois eu passo aqui pra ver Tereza
Dizem que ela gosta de surpresa
Quem sabe eu me ajeito e me aquieto
E limpa esse balcão, tem muito inseto

Fernando Lago – Novembro de 2012 

10 de nov. de 2012

Leve Ana

Para Ana Luiza Benjamim 


Imagem: http://fama.zupi.com.br/juvioleta


Ana
Teu corpo encana
O fluido que te faz insana
Tua alma é leve, Ana
E leviana é a desquerência
Dos que não te amam

Leve, Ana
Para longe de ti
Todo o mal que ecoa

Ana, à toa
Fazes-me rir
E no devir
Pensar num mundo que vai surgir
Do seu sorriso-luz

Ana Luiza
Tu exorcizas
Todos os males
da sobriedade
Na sua busca
Pela verdade
Já não vem tarde
O seu sorriso
Sem juízo, Ana

Ana
Muda, Ana
A paisagem mundana
Com seu olhar
De limpidez  
Pois sua loucura
É cura
Para a doença
Incurável
Da lucidez

Fernando Lago - Novembro de 2012