Sentiu o vento gelado no rosto. Estava
tarde, já começava a escurecer e o menino devia estar preocupado. Mexeu as
pernas e jogou o corpo pro lado, cortando o vento na curva em direção ao centro
da cidadezinha, onde ficava o prédio velho em que se viam. Manobrou para chegar
por trás. Sempre fazia isso e não sabia por que. Não era gaiatice, vontade de
assustar o menino, nada disso. Na sua cabeça, parecia que o menino gostava mais
quando ela chegava assim, de mansinho, e sentava-se do seu lado sem alarde. Mas
não sabia explicar por que se sentia assim.
Pousou de mau jeito. O vento atrapalhou
a aterrissagem e ela se esbarrou num varal antigo com uns trapos velhos
pendurados ali provavelmente há anos.
- Odeio o inverno!
Estava frio. De longe, viu o menino
sentado no cantinho onde costumavam conversar sobre tudo e sobre nada. Ou
apenas ficar calados, às vezes. Estava encolhido, olhando para algum lugar
indefinido, provavelmente dentro de si mesmo.
A menina pegou um pequeno impulso e, sem
levantar voo, chegou rapidamente perto dele e sentou-se ao seu lado
silenciosamente, como sempre fazia.
- Pensei que não viesse hoje...
- Pensei que não me esperaria tanto...
Ela percebeu que ele tremia um pouco.
- Está com frio?
- Um pouco.
- Pra que veio pra cá sem agasalho, seu
louco?
- Estava calor quando saí de casa.
- É verdade... me atrasei.
- Mas está aqui. Sempre está. Por isso
vale a pena te esperar...
- Toma, pega meu casaco.
- Mas, e você?
- Estou acostumada com o vento. É meu
amigo, não me fará mal.
- Obrigado.
Ele pôs o casaco dela, como estava
quentinho! Como queria aquela quentura ao seu lado. Sempre. Por que, por que
ela não se instalava em sua casa, como ele sugeriu tantas vezes? Tinha certeza
que se conversasse com a mãe ela não faria objeção. Sempre foi tão solidária!
- Você estava tão pensativo quando eu
cheguei – disse a menina.
- Nós, seres humanos somos assim...
- Assim como?
- Pensamos, pensamos, pensamos... E às
vezes só fazemos isso. Poucos de nós têm coragem pra ultrapassar a barreira do
pensamento e realizar coisas, porque... Você não entenderia.
- Por quê? Fala como se eu não fosse
humana também.
- Seres humanos não voam, Lila!
- Como é que você sabe?
- Eu é que não vou tentar!
Ela ficou olhando o rosto debochado do
menino. Estava séria. Como ele pode ser tão infantil?
- Pareço um monstro?
- Não, Lila, você é linda!
- Então o que tem em mim que me
descaracteriza como ser humano, Ricardo?
- Já disse, você voa! Eu nunca vi nenhum
ser humano voar!
- Quais são as características de um ser
humano?
- Bom, eles não voam...
- Então, se eu parar de voar, viro um
ser humano?
Não, porque a qualquer momento você pode
se sentir tentada a sair voando de novo. Porque você pode, Lila. Aí que está a
questão! Você pode.
- Então o que eu sou?
- Você é a criatura mais doce que eu
conheço!
Ela ficou calada, riscando o piso da
cobertura com o dedo indicador. A cidade lá embaixo começava a silenciar-se, cá
em cima a escuridão já dificultava um pouco a visão. O menino acendeu uma
lanterna, iluminou os olhos dela brincando e percebeu que ela estava chateada.
- Pode ficar em pé um pouquinho, Lila?
- Por quê?
- Pode ou não pode?
A menina levantou-se, sacodindo a poeira
do vestido. Ricardo sentou-se à sua frente, ligou a luz da lanterna e ficou
olhando deslumbrado. Pediu que ela virasse, ela obedeceu. Ele sorria, virava a
cabeça para um lado, para o outro... Ela sem entender.
- Pode se sentar, se quiser – disse
enfim.
- Que bestagem foi essa?
- Você é perfeita!
- Pare com isso, Ricardo! Me explica
direitinho o que quer?
- Eu retiro o que disse.
- De que eu sou perfeita?
- De que não é humana. Você tem todas as
características de um ser humano...
- Mas eu posso voar.
- E quem garante que o problema é com
você?
- Que quer dizer?
- Se os outros não podem voar, talvez seja
porque não aprenderam.
Ela sorriu, enquanto ele continuava:
- Talvez você seja mais humana do que
pensa, mais humana do que nós...
- Você não tem jeito, Ricardo!
E meio sem querer, mas querendo muito, a
menina encostou seu rosto ao dele, depois os lábios e tão rápido quanto se
atraíram, repeliram-se, como quem encosta a mão num eletrodoméstico que dá
choque.
Atônito, ele levantou-se rápido e saiu
correndo desesperadamente em direção à borda do prédio e, sem que Lila pudesse
fazer nada para evitar, saltou fora do prédio, com os braços abertos.
Fernando Lago - Setembro de 2011