20 de mar. de 2018

O Dia de Raulzinho


October 2013 marks the eighth annual national Bullying Prevention Month in the United States. It is important for Shaw Air Force Base, S.C., Airmen to recognize and prevent bullying to maintain the quality of the world’s greatest Air Force. (U.S. Air Force photo by Senior Airman Tabatha Zarrella/Released)

- Medroso! Medroso!
O coro já era conhecido, sempre repetido quando Raulzinho, o menino mais raquítico da Vila, evitava algum convite dos colegas da sua idade. Na escola o apelidaram de mosquito prego, por causa da sua magreza, do seu tamanho e da cor da sua pele. Não fazia nada de nada na hora das brincadeiras da rua, nem na aula de educação física. E, reparem, era bom que não fizesse mesmo, porque dava uma pena danada aquela coisinha minúscula e frágil andando entre os outros adolescentes. Parecia que ia se quebrar a qualquer momento.
As meninas não olhavam para ele. Minto, olhavam: as filhas de dona Cotinha, que morava no final da rua, passavam o dia estudando o menino e dando risinhos estridentes, entredentes. Um dia Raulzinho passou perto e teve a impressão de ouvir uma delas falando: “Parece um bicho-pau”.
Raulzinho parecia viver num mundo totalmente separado do mundo dos outros. Quase não abria a boca. Apenas para responder “não” se o convidavam para alguma brincadeira em que precisasse se mexer.  Em sala de aula, quando o professor o instigava a fazer alguma declaração, dizia tudo baixinho e quase ninguém o ouvia, ainda mais que a classe fazia a maior algazarra, repetindo, a meia voz, o refrão de sempre:
- Medroso! Medroso!
Fora da escola, ficava sentado na calçada, em frente à sua casa, olhando o movimento da rua. Sua mãe, às vezes, vinha à janela para ver o que estava fazendo, já sabendo que o encontraria sentado ali, como sempre.
- Esse menino tem algum problema...
Um dia, Maneco resolveu brincar com o rapazito.
Maneco era o cara mais corpulento da Vila e estudava na mesma sala de Raulzinho. Aliás, havia uns quatro anos que estudava naquela série. Raulzinho também repetira um ano, por causa do sua baixa participação nos trabalhos em grupo, de modo que os dois eram velhos conhecidos, embora não se relacionassem. Pois Manecão chegou pro Raulzinho na hora da Educação Física e soltou o decreto:
- Hoje você joga no meu time!
- Não... – Disse simplesmente o menino.
- Não é um convite, zé mané! Eu estou mandando você jogar no meu time hoje!
- Já disse que não, não gosto de futebol – falou Raulzinho com sua voz miada - e era a primeira vez que o ouviam falar tanto.
- Você perdeu a noção do perigo?
Manecão já berrava, os meninos que até então não tinham dado importância à conversa começaram a se aproximar. Os mais afoitos por novidade atiçavam, esperançosos:
- Xi, vai ter porrada hoje!
Maneco pegou com força no braço de Raulzinho, parecia que apertava uma talisca de madeira.
- Escuta aqui, ô viadinho! Ou você joga no meu time hoje, ou entra na porrada!
Raulzinho não dizia nada, apenas olhava o rosto do outro atentamente. Os olhos tremiam, demonstrava insegurança, mas não parecia estar morrendo de medo. Por que ele não chorava? Isso inquietava o Maneco, acostumado a incutir terror nos meninos menores que ele, isto é, quase todo mundo da escola. Apostou que faria o menino chorar em segundos e agora aquela coisinha ficava ali olhando pra ele, sem esboçar palavra, e nem uma gotinha de lágrima nos olhos. Que que aquele moleque tinha? Ele era um medroso, um medroso! Por que não demonstrava esse medo? Foi afrouxando o braço lentamente, até soltá-lo de todo. Era para ser apenas uma brincadeira, mas agora ele iria até o fim:
- Pede pra sua mãe acionar o plano de saúde, que hoje você vai tomar a maior surra da sua vida.
E saiu em direção à quadra para iniciar o jogo com os outros. Raulzinho sentou-se numa cadeira e não se moveu dali durante toda a aula de educação física. Ao voltarem para a sala, sentou-se em seu lugar, que era quase no fundo da sala, na fila da direita. De lá, podia ver o Manecão em uma das primeiras cadeiras da fila da esquerda; sempre que o professor virava as costas, fazia para ele o gesto universal, batendo o punho fechado na palma da mão.
Um pouquinho antes de a sirene anunciar o fim da última aula, Raulzinho levantou a mão e pediu licença. Não era seu costume fazer isso, então o professor concluiu que era coisa urgente mesmo. Não queria nenhum menino cagado na sala de aula, ainda mais aquele, que já era tão perseguido pelos colegas. Permitiu que o menino saísse. Manecão deu um riso de satisfação. O maricas tava se borrando de medo, na certa foi falar ao diretor sobre o iminente perigo no portão. Já não precisaria mais bater nele, deixaria passar. Só queria mesmo fazer medo e agora estava satisfeito. Se pudesse vê-lo chorar... Seria o triunfo total. Era isso, ele devia estar chorando agora na diretoria! Não teve dúvida:
- Professor, posso ir na licença?
- “Na licença?” De novo, Manuel!? Assim não dá!
- O senhor que sabe! Vou peidar aqui mesmo, então!
- Vai, vai, vai! - disse entre as risadas dos outros meninos - E vocês silêncio aí! 
Correu em direção à sala do diretor. A porta estava fechada. Abaixou a cabeça e, no momento que ia encostar o ouvido na porta, ela se abriu.
- Pois não? – disse o diretor
- Ah, é... Não tem ninguém aí com o senhor?
- O que você está aprontando dessa vez, Manec... digo, Manuel?
- Não é nada, só estava passando...
Correu de volta à sala, o menino não estava lá. Será que tinha fugido? Mas e ele ia deixar as coisas na sala? Dane-se! Se ele tivesse fugido, melhor! Podia dormir tranquilo com a sua consciência de agressor psicológico. Vitória!
Mal sentou-se e o sinal tocou, informando o fim da aula. Todos os alunos levantaram-se apressados, nem repararam que o colega ainda não havia voltado. Apenas o Maneco ficou na sala, aguardando.
- E essa mochila? - perguntou o professor.
- É do Raulzinho, deixa que eu entrego a ele.
O professor hesitou:
- Ele deve estar aqui na escola ainda... Pode ir, Manuel, eu vou procura-lo.
Andou por quase todas as dependências da escola e não encontrou o menino. Afinal, devia ter ido embora. Moleque mais maluco. Melhor era deixar as coisas dele na sala do diretor, depois alguém entregava. Ia passando pela cozinha, quando a servente o interrompeu:
- O senhor terminou com a faca?
- Que faca?
- Pois o senhor não mandou aquele menino magrinho vir pegar uma faca emprestada aqui?
- Eu não! Você deu uma faca pro Raul?
Não houve tempo para a mulher responder, uma algazarra se fazia no portão e todos os que ainda estavam na escola iam correndo para lá. O professor jogou a bolsa do Raulzinho no chão e saiu também correndo em direção ao portão. Antes mesmo de ultrapassar o portão, pôde ver o que acontecia. Cinco ou seis meninos chutavam o corpo já inconsciente do Raulzinho, jogado no chão da frente da escola. Correu mais rápido, gritando:
- Parem, parem com isso, parem com isso já!
Um dos alunos o segurou forte, impedindo-o de chegar até os agressores, berrando:
- O senhor não viu o que ele fez? Não viu?
Só então o professor pôde voltar-se e ver, a um canto, o corpo do Manecão caído com uma faca encravada no peito.
Foi o primeiro e último ato de valentia do Raulzinho.    

Por: Fernando Lago. Texto vencedor da versão interna do II Prêmio Castro Alves (2018) da Academia Teixeirense de Letras - categoria crônica. 


24 de set. de 2016

A menina que amei

Imagem: http://kacka-kopecka.blog.cz

Minha mãos já perceberam
Que você não é mais menina
Passeando, seu corpo estremecido
As mãos vibram na sismografia de Richter

Meus ouvidos, olhos, orelhas
Boca e pernas e dentes
Todo o meu corpo, enfim
Percebe que não, você
Não é mais a menina que amei

Confesso, senti uma saudade
Te imaginando menina
Te imaginando inocente
Confesso, sorri de encanto
Do encanto que me fazia
O riso em cova que havia
A sua doçura pueril
Dos seus cabelos em cachos
Confesso, senti essas faltas

Minhas mãos, meus olhos, meu corpo 
Já sentem, você  
Não é mais a menina que eu amei 

Que grande habilidade transformista 
Que mantém a pura essência 
O meu coração é quem sabe 
O tempo passou, passou 
E você não é mais a menina que amei 
Mas é a mulher que eu amo 

(Fernando Lago - 2015) 

26 de jul. de 2014

Vinte e Cinco



O mundo segue
E ainda que não cegue
Ainda que não chegue
A sege do destino
Vou caminhando em direção ao escuro

Visito em meus sonhos
Faces desconhecidas
Beijo rostos e bocas
Canto e danço sozinho
Caminho por avenidas e ruas
Buracos dessa minha cidade
E aí
E aí
Não vejo a hora em que acordo

Que é que querem de mim?
Os deuses, os espíritos
As árvores e os animais
As pessoas e as máquinas
Que é que querem de mim?

Eu ontem fiz vinte e cinco anos
Sim, ontem num dia distante
Ontem na hora do rush
No momento em que a madame atravessava a faixa de pedestre
E o homem da motocicleta olhava as suas nádegas
Fiz vinte e cinco anos
Ontem

Aí eu não sei o que querem de mim
E se pergunto, também não sabem
Desconversam, olha um passarinho
Aquela casa um dia cai
Aquela menina que passa, que pernas hein
E não me contam as coisas
E não me falam de mim

Que querem de mim todas as vidas?
Todas as formas de se acabar com a vida?
Que querem de mim?

Eu ontem fiz vinte e cinco anos
E nem sei para que lado vou
Atravesso a ponte com medo de cair lá embaixo
Eu marco um encontro com medo de emboscada
E quem me haveria de emboscar?

Em duas páginas de poesia, só tenho dito absurdos
Mas o mundo é absurdo, baby
Quanto mais absurdo serei eu
Que nem do mundo faço parte

Agora tenho medo das coisas
Tenho medo do mundo e das coisas
Das pessoas
Da água
Da poliomielite
Não tenho medo da morte
Mas seria uma pena morrer

Eu ontem fiz vinte e cinco anos
E ainda não fiz uma mulher sofrer 

Janeiro de 2014

28 de abr. de 2014

Para a reconstrução do ser



Junto a cal que cairá sobre minha cova
Ao sangue que irrigava a alcova
De minha mãe quando lhe soube a fertilidade

Junto a massa que preenche o meu cérebro
À argamassa que me pavimenta chão
A borracha do calçado dos meus pés
Á tarraxa que afina o violão
Que entoa os meus cantos naturais
Ás belezas que preenchem o universo

Junto à sombra que me vela o sono
A luz que me revela as faces
Ao cansaço que me adormece
A excitação que me amanhece
Junto ao sol que me machuca os olhos
A água que me irriga as faces

E a todos estes materiais
Que não se compra em lojas na cidade
E são raros, raros, raros como o quê
Junto o mais raro material 
A vontade.  

Fernando Lago - Setembro de 2013

24 de jul. de 2013

Sinfônica


De repente começa a tocar uma música que me toca. Conheço as notas, sei o motivo de cada posição na partitura e cada tilintar de instrumento: o menor detalhe que seja, me faz pensar em algo que ainda não sei exatamente definir. Como assim? E essa pergunta sou eu mesmo que me faço a mim. Sei que aquela canção significa alguma coisa, sei que alguma coisa no meu passado teve aquele conjunto de notas organizadas na ordem definida por um compositor e executada por vários músicos como trilha sonora de alguma ocasião da minha vida. Puxo pela memória. Não, não foi nenhuma namorada, porque as tive poucas e nenhuma delas esteve direta ou indiretamente ligada a essa peça musical. E nem poderia, porque a tal peça é um instrumental, contemporâneo, mistura Beethoven e Mozart com batidas de eletrônico. Aliás não tão contemporâneo assim, porque o eletrônico não é o mesmo eletrônico de agora, mas o de uma ou duas décadas atrás, que não tinha tanta tecnologia computadórica e ilumativa como as de hoje. Mas não, não era nenhuma namorada porque nenhuma das poucas que tive curtiria uma canção com este modelo. Não, nenhuma delas, nem meu pai, meu saudoso pai que ainda vive e só é saudoso no sentido de que há tempos não me vê e vive dizendo que tem saudade de mim, no mais, vende saúde, mas só vende no sentido de que ele é farmacêutico, mas anda adoentadinho, o coitado. Não, meu pai, farmacêutico, não apreciaria essa canção, já que prefere um bom sertanejo, mas daqueles sertanejos caipiras, de verdade, não esses sertanejos urbanos de hoje em dia. Não, nem meu pai, nem minha mãe. Porque minha mãe não entendia nada de música e me repreendia se eu ouvia música sem letra, porque para ela uma música só com instrumentos era uma música aleijada. Nem minha mãe, nem meus irmãos, porque eu era filho único.
Mas que raio de música é essa que toca, que me faz refletir coisas fora do comum e de um jeito fora do comum com comparações toscas e explicações demasiadamente prolixas? Sabemos por que estamos falando dela. Ela me lembra de algo. Se eu conheço a música, é claro que conheço. Conheço-a muito bem. Mas não é o fato de conhecê-la. É o que ela traz em suas notas e acordes. E a investigação que se me dá é justamente de buscar o porquê de eu estar com o ouvido colado nessa canção, tentando reviver algo que ela me traz sem eu sequer saber o que seja.
Vejamos, conhecemos a música, vamos escutá-la com calma. Sim, é ela mesmo, lembro-me dela porque tocava na casa do vizinho que era metido a intelectual, embora não entendesse nada de música falava da perfeição que era aquele conjunto contemporâneo e não estava errado em nada, mas isso eu só descobri depois que aprendi música... espera. Então é isso, nessa época eu era criança e não sabia nada de música... sim, a canção do vizinho de outrora é a do vizinho de agora – sim, é um vizinho, jovem, que a ouve neste momento.
É isso o que essa canção traz. Não é uma lembrança, não é a vontade de ver uma pessoa. O sentimento que traz é todo o contexto da época em que a ouvia com frequência, todas as lembranças, todas as pessoas, todas as brincadeiras e o programa de TV que passava na época e a hora de ir pra missa e o galo cantando fora de hora e o cachorro que mijou na porta da rua e o arroz que estava caro e o cheiro de café à tarde e o meu pai que estava cansado e pedia para o vizinho abaixar o volume...

Uma canção pode guardar tanta coisa junta... É o melhor baú que se pode ter.  

Fernando Lago - Julho de 2013

25 de mai. de 2013

Hamartía


Faltando alguns minutos para o exame prático o telefone celular toca o hit do momento, coisa que não surpreende nenhum dos circunstantes, visto que o sujeito tinha mesmo cara de quem gosta de um bom rebolejo.
- Sou eu, pode falar.
- Aqui é o deputado Peixoto, lembra-se de mim?
- Claro, como não lembraria?
- Pois é, gostaria de um favor enorme seu.
- O que estiver ao meu alcance, excelência.
- Não precisa me chamar de excelência, estamos entre amigos. Olha só, hoje tem na sua lista aí um Marivaldo Carneiro...
- Só um minutinho, deputado – disse ele e, sabendo mais ou menos aonde ia aquela conversa, afastou-se dos candidatos que aguardavam o início do exame, isolando-se à sombra de uma árvore que havia no terreiro do Departamento de Trânsito.
- Pode falar agora.
- Muito bem, esse Marivaldo Carneiro é filho de Renaldo Carneiro, que vem a ser dono da Carneiro eventos, que por um feliz acaso patrocinou minha campanha... o senhor está entendendo onde quero chegar?
- Sim, mas devo perguntar uma coisa.
- Que coisa?
- Esse rapaz sabe mesmo dirigir? Porque tem coisa que a gente pode maneirar, pode ser nervosismo tal, geralmente a gente reprova o candidato, mas, quando é conhecido, a gente dá uma aliviada, né... Mas a gente não pode aprovar qualquer um...
- Mas não é qualquer um, o senhor não confia em mim?
- Claro, confio, deputado, só estou falando...
- Tudo bem, o senhor é um profissional. Se ele for realmente ruim, o reprove – o tom do deputado já não era tão cordial – não estou te pedindo para fazer nada além do que o senhor faz para seus conhecidos. E eu sou seu conhecido, não sou?
- Claro que é, deputado. Pode deixar, ajudarei da maneira que puder.
Desligou o telefone e encaminhou-se aos candidatos, que já aguardavam impacientes. Um sujeito magro e miúdo resmungava e o nosso avaliador só pôde ouvir as últimas palavras: “...tudo que é público é essa merda mesmo”.
- Muito bem – disse com a prancheta na mão – vamos iniciar com o senhor... Marivaldo Carneiro. – E disse consigo: “Tomara que não seja tão ruim, o moleque”.
O rapaz devia ter dezoito ou dezenove anos. Cara de arrogante, jeito de moleque inconsequente. “Pela batida da porta do carro se conhece o caráter de um homem”, pensou o avaliador, e não gostara nada, nada do caráter desse Carneiro, que antes mesmo de ele declarar iniciado o exame já dava a partida ao carro e começava a fazer as manobras de garagem. Só essa atitude já lhe cabia a perda de alguns pontos. Depois tocou os cones com a lateral do veículo, mais alguns pontos, aliás, menos alguns pontos. Por fim, e só quando o carro parou que o avaliador pôs reparo, o motorista estava sem o cinto de segurança, o que lhe caberia a reprovação imediata. Felizmente para o avaliador e para o avaliado nenhum dos outros candidatos podiam ver esses detalhes da prova, devido à distância que lhes era imposta entre o local de espera e o local de avaliação. O sujeito saiu do carro com a mesma arrogância, com a mesma cara de bunda, mas com ar de satisfação, como se tivesse feito o melhor estacionamento do mundo, ao passar pelo avaliador perguntou:
- E aí, como fui?
- O resultado é publicado no nosso site em até 48 horas – disse friamente, o rapaz saiu com o ar irritadiço.
Demorou-se dois minutos a decidir em qual quadrinho marcava um xis: se no de aprovado ou no de reprovado. Não tinha muito tempo de ponderar. Aprovou-o. E deu sequência aos exames.
Alguns dias depois o telefone toca, o mesmo número e a mesma voz do dia dos exames: ele sabia quem era.
- Estou muito satisfeito, se precisar de alguma coisa é só me procurar nesse número.
- Muito obrigado, deputado.
Passaram-se dias, meses, semanas. Já estava o episódio esquecido, esfriado, morto e enterrado. Ia o nosso avaliador pela avenida quando vê, com os próprios olhos, um carro de luxo se descontrolar, bater num poste e ainda de quebra atropelar uma senhora não tão senhora de si que no momento atravessava a rua distraída (distraída ela, senhora, não a rua).
Seguindo o instinto humano de ajudar o outro (ou de curiosidade, quem sabe), o nosso avaliador parou o carro e foi primeiro ver a vítima do atropelamento, que expirara no mesmo momento, o que era trágico, mas para o que qualquer ajuda seria vã. Em seguida foi até o carro e qual não foi a sua surpresa em reconhecer o tal Marivaldo Carneiro, coisa que o leitor já deve estar desconfiado que fosse acontecer desde o início do parágrafo anterior.
Carneiro estava consciente, apenas estagnado pelo susto do acidente. Olhava a frente do carro com os olhos vidrados e as mãos trêmulas.
- Você está bem? – perguntou o avaliador – não se machucou?
- A mulher morreu?
- Infelizmente sim.
- Tô fudido, muito fudido.
O avaliador do departamento de trânsito fez três ligações. Uma para a polícia, praxe em caso de acidentes e porque qualquer outro logo o faria, já que como se sabe acidentes juntam populares mais rápido que doce junta formiga. A segunda ligação foi para a emergência, e a terceira foi para o deputado Peixoto, que rapidamente ajeitou a situação e livrou o filho do amigo de um processo criminal coisa que revoltou a família da senhora atropelada e uns tantos quantos na internet, mas graças ao testemunho do nosso avaliador que até agora não teve nome, o processo correu como infração de trânsito, tendo cabido como pena ao nosso jovem lobo em pele de Carneiro apenas uma multa irrisória diante do lucro da empresa de seu pai e a perda da autorização para dirigir, coisa que em um ano ou menos ele pode recuperar, provavelmente com a ajuda de algum avaliador conhecido do conhecido do seu pai.
Mas este não será o nosso avaliador, que agora já não é avaliador, mas diretor do Departamento de Trânsito, cargo que atingiu meritocraticamente, segundo a insuspeita opinião do deputado Peixoto. E para que não termine a história sem que nosso personagem principal tenha um nome, chamá-lo-emos de Diretor Morais.
Morais, digo, Moral: Está cada dia mais difícil conseguir uma catarse nesse país.

Fernando Lago – Maio de 2013