Lila deu um salto tão rápido quanto
pôde, reunindo em torno de si todo o ar que conseguiu. Nunca fizera algo assim
tão intenso, sentiu o ar lhe faltar nos pulmões, ficou com medo de desmaiar...
Desceu muito rápido, cortando o vento frio da noite. Quase não era o
suficiente. Ricardo teve sorte.
- Você é maluco? – disse Lila
visivelmente irritada, visivelmente amedrontada, com o rosto encostado no do
amigo – você não tem nada na cabeça? Está querendo me matar?
A despeito de ter escapado da morte há
poucos segundos, Ricardo sorria, olhando os olhos da menina.
- De que você está rindo, seu imbecil!?
Você não é nada leve! Quase mata nós dois. Nunca mais faça isso, ouviu?
- Você é humana, Lila. Muito humana... E
é tão linda essa mancha vermelha na sua bochecha quando tem medo!
- Maluco!
Ela sentou-se voltada pro lado oposto.
Ele encostou-se nela com carinho.
- Nem vem! – disse ela afastando-se.
- Desculpa, Lila!
- Você não tem juízo!
- Eu pensei que talvez conseguisse...
- Besteira! Você tinha razão, Ricardo.
Eu não sou humana! Sou qualquer outra coisa, menos humana. Nunca mais tente
fazer isso, entendeu? Você não pode voar!
- Você é especial, Lila...
- Sim, porque de alguma maneira
inexplicável consigo manipular o ar e a gravidade ao redor de mim...
- Não por isso. Mas principalmente
porque tem coragem de fazê-lo.
- Como assim?
- Supõe que todos os seres humanos
pudessem...
- Ah, não começa isso de novo, Ricardo!
- Não, escuta. Supõe que todos os
humanos, ou pelo menos um grupo significativo deles, tivessem a mesma
capacidade que você tem.
- E daí? Todos voariam, visitariam seus
amigos, parentes... iriam ao trabalho voando. O céu ia ser a mesma coisa do
chão...
- Exatamente. Banalizariam essa coisa de
voar... Ia ser tão normal que ninguém ia notar que estava voando... Mas não é
bem aí que eu quero chegar.
- E aonde quer chegar?
- Veja bem, mesmo que todos soubessem
voar isso não ia garantir que o fariam.
- Por que?
- Aquilo que eu te falei antes... A
gente pensa, pensa, pensa... mas tem medo. Eu mesmo tenho medo de muita coisa.
- Pois pra mim é preciso ter muita
coragem pra saltar de um prédio velho de cinco andares.
Riram juntos. Ricardo tocou as mãos da
menina e começou a brincar com seus dedos.
- São iguais aos meus!
- Os seus são um pouco maiores.
- Não, palhaça. Estou falando que são de
carne, osso, pele e tudo o que tem direito.
- E o que você queria encontrar aí?
- Sei lá, penas... – disse o menino
rindo.
Ela riu também, e deixou sua cabeça cair
no ombro dele, dizendo:
- Essa incerteza sobre quem sou acaba
comigo... A moça que ficou comigo na fazenda depois do acidente me chamava de
celeste. Ela dizia que eu devia ter vindo do céu.
- Talvez você seja um anjo... o meu anjo
da guarda.
- Então eu sou anjo da guarda de meu
próprio anjo da guarda...
Dessa vez foi ele que levou o rosto ao
encontro do dela, com o biquinho adolescente pronto para a carícia. Mas recuou
ao sentir os braços dela lhe apertando bem as costas.
- Pra garantir que você não vai pular de
novo – disse ela rindo, antes de consumarem o beijo.
Setembro de 2011