24 de jul. de 2013

Sinfônica


De repente começa a tocar uma música que me toca. Conheço as notas, sei o motivo de cada posição na partitura e cada tilintar de instrumento: o menor detalhe que seja, me faz pensar em algo que ainda não sei exatamente definir. Como assim? E essa pergunta sou eu mesmo que me faço a mim. Sei que aquela canção significa alguma coisa, sei que alguma coisa no meu passado teve aquele conjunto de notas organizadas na ordem definida por um compositor e executada por vários músicos como trilha sonora de alguma ocasião da minha vida. Puxo pela memória. Não, não foi nenhuma namorada, porque as tive poucas e nenhuma delas esteve direta ou indiretamente ligada a essa peça musical. E nem poderia, porque a tal peça é um instrumental, contemporâneo, mistura Beethoven e Mozart com batidas de eletrônico. Aliás não tão contemporâneo assim, porque o eletrônico não é o mesmo eletrônico de agora, mas o de uma ou duas décadas atrás, que não tinha tanta tecnologia computadórica e ilumativa como as de hoje. Mas não, não era nenhuma namorada porque nenhuma das poucas que tive curtiria uma canção com este modelo. Não, nenhuma delas, nem meu pai, meu saudoso pai que ainda vive e só é saudoso no sentido de que há tempos não me vê e vive dizendo que tem saudade de mim, no mais, vende saúde, mas só vende no sentido de que ele é farmacêutico, mas anda adoentadinho, o coitado. Não, meu pai, farmacêutico, não apreciaria essa canção, já que prefere um bom sertanejo, mas daqueles sertanejos caipiras, de verdade, não esses sertanejos urbanos de hoje em dia. Não, nem meu pai, nem minha mãe. Porque minha mãe não entendia nada de música e me repreendia se eu ouvia música sem letra, porque para ela uma música só com instrumentos era uma música aleijada. Nem minha mãe, nem meus irmãos, porque eu era filho único.
Mas que raio de música é essa que toca, que me faz refletir coisas fora do comum e de um jeito fora do comum com comparações toscas e explicações demasiadamente prolixas? Sabemos por que estamos falando dela. Ela me lembra de algo. Se eu conheço a música, é claro que conheço. Conheço-a muito bem. Mas não é o fato de conhecê-la. É o que ela traz em suas notas e acordes. E a investigação que se me dá é justamente de buscar o porquê de eu estar com o ouvido colado nessa canção, tentando reviver algo que ela me traz sem eu sequer saber o que seja.
Vejamos, conhecemos a música, vamos escutá-la com calma. Sim, é ela mesmo, lembro-me dela porque tocava na casa do vizinho que era metido a intelectual, embora não entendesse nada de música falava da perfeição que era aquele conjunto contemporâneo e não estava errado em nada, mas isso eu só descobri depois que aprendi música... espera. Então é isso, nessa época eu era criança e não sabia nada de música... sim, a canção do vizinho de outrora é a do vizinho de agora – sim, é um vizinho, jovem, que a ouve neste momento.
É isso o que essa canção traz. Não é uma lembrança, não é a vontade de ver uma pessoa. O sentimento que traz é todo o contexto da época em que a ouvia com frequência, todas as lembranças, todas as pessoas, todas as brincadeiras e o programa de TV que passava na época e a hora de ir pra missa e o galo cantando fora de hora e o cachorro que mijou na porta da rua e o arroz que estava caro e o cheiro de café à tarde e o meu pai que estava cansado e pedia para o vizinho abaixar o volume...

Uma canção pode guardar tanta coisa junta... É o melhor baú que se pode ter.  

Fernando Lago - Julho de 2013