25 de ago. de 2012

A formiga e a cigarra, ou vice e versa



Uma cigarra, dessas cantadeiras que chega a doer-nos o ouvido de tanto escutar o seu canto, vivia pela floresta soltando o gogó como se fosse Agnaldo Rayol. Enquanto isso, dona formiga, operária em construção, vivia sempre derramando o suor do seu rosto, se é que formiga tenha suor e rosto, mas, se tiver, o dessa aí está sempre todo suado, certeza.

As duas se encontraram num dia em que a formiga ia carregando uma folha pra logo ali, ó, virando a esquina. A cigarra ia pr’um happy hour em Copacabana e achou interessantíssima essa vida que levava a formiga (duplo sentido). Ressaltou, entretanto:

- Mas eu, queridinha, prefiro mesmo é cantar meus roques. Até admiro, mas esse negócio de trabalhar não é comigo não.

Como vocês já devem estar esperando, veio o inverno – até Copacabana esfriou – e a formiga recolheu-se em seu apê no condomínio Paraíso, enquanto a cigarra, sem nem um miojo pra comer, perambulava pela rua, até que engoliu o orgulho e tocou a companhia da comadre (como vocês sabem, os bichos eram todos compadres e comadres) para pedir arrego.

- Mas moça cigarra! – disse a formiga surpresa – Parece que adivinha! Eu ia mesmo te ligar!  Estamos aqui precisando de um acustic MTV pra nossa festa invernal (muito cuidado ao ler essa palavra).


Enfim, vocês já devem adivinhar o fim dessa história, vocês sabem como são essas coisas. A formiga, depois que a Primavera voltou, virou empresária da Cigarra e nunca mais precisou juntar comida para o inverno. Manda vir tudo pelo delivery.

Moral: conversando a gente se entende.  

Fernando Lago - Agosto de 2012 

4 de ago. de 2012

A visita



O grande sábio Sheng Ren Hu mandou que avisassem a um de seus discípulos na aldeia de Ba Xii que iria comparecer à sua humilde e pobre casa para honrá-lo com a sua visita e, decerto, para partilhar de um jantar com a família dele, discípulo – válido explicar para que todos lembrem que sábios da estatura de Sheng Ren Hu não se casavam, ou porque não lhes queriam as mulheres ou porque eles próprios assim preferiam, vá lá compreender.

Mas, como íamos dizendo, foi através de um bilhete escrito em símbolos do alfabeto chinês que o grande e considerado sábio disse a seu menos incauto discípulo de Ba Xii: prepara-te, pois esta noite cearei contigo.

Ora, sendo o grande sábio uma pessoa de tamanha importância religiosa para o povo daquela aldeia, tendo status de santo ou de autoridade sobre os elementos naturais e sobrenaturais, preparou-se logo o nosso aldeão para receber da melhor forma possível o seu cultuado mestre. De modo que, juntando todas as suas economias, tomou pelo braço a sua mulher – que não era tão apegada assim às sabedorias de Sheng Ren, mas que respeitava as maluquices do marido – e lá foram os dois para o mercado de alimentos, preparar uma bela de uma ceia para o sábio sabido.

Lá pelas tantas, quando o discípulo e sua esposa já tinham terminado o preparo da ceia, que há de se admitir ficou uma coisa realmente digna de um sábio, apareceu um caminheiro à porta que disse:

- Meus senhores, percebam por minhas roupas que sou viajante e há muito que não como. Eu cá por minha vez percebo que os senhores são um casal de bom coração e não hão de me negar ajuda.

- Estás sem sorte, caminheiro – retrucou o discípulo do sábio – se fosse qualquer outro dia nós o ajudaríamos, mas hoje estamos esperando a visita de Sheng Ren Hu.

- Sheng Ren Hu?

- Sim!

- Que honra!

E lá se foi o caminheiro, que até que não era um sujeito ruim das vistas, porque realmente aquele casal tinha cara de quem gostava de ajudar as pessoas mais necessitadas, e efetivamente o eram. E talvez a notícia desta boa vontade toda tenha se espalhado por aí, porque dali a algumas horas um mendigo bateu palmas diante da porta do casal para pedir um prato que fosse de farinha com carne seca (e olha que essa história nem se passa no sertão nordestino!). Mas, como da outra vez, retrucou o discípulo que estava esperando o sábio já conhecido de todos.

Quando chegou um terceiro mendigo que, da mesma forma, fora dispensado pelo discípulo de Sheng Ren Hu, a mulher ficou inquieta.

- Olha, meu benzinho (ela não disse benzinho, mas estou apenas modernizando a história) esse seu sábio está demorando demais. A gente podia ajudar algum desses pobres desgraçados.

- Cala-te, mulher! – retrucou o discípulo que, como já percebemos, era muito chegado numa retrucada – ele disse que vem, então ele vem. E a gente vai esperar. Nem que todos os famintos da cidade ou da província venham bater na minha porta! O sábio é mais importante que todos!

A mulher ainda obtemperaria que poderia ser um teste do sábio para saber a humildade dos seus – os sábios tem essa mania. Mas não quis mais perder saliva com um marido tão cabeça dura.

Passaram as horas e o sábio não veio. Chegou a noite e o sábio não veio. Amanheceu o dia e o sábio não veio. E a mulher resolveu apresentar ao marido a sua versão de ter sido isso tudo um teste feito pelo sábio. O discípulo achou bem convincente a história da mulher e começou a se martirizar pelo egoísmo e desapego com os mais necessitados. Já estava quase se carpindo quando apareceu à sua porta os discípulos mais chegados do sábio, abrindo caminho para o próprio, que vinha com um pedido de desculpas pela falha no dia anterior, e um apetite de leão.

Enquanto servia a mesa, o discípulo contava com bom humor o ocorrido com os mendigos à sua porta, para mostrar ao sábio quanta honra ele tinha por recebê-lo. Enquanto mastigava filosoficamente a sua comida, o sábio dizia com tom de aplauso:

- Muito bem, muito bem!

E no frio da rua, os três mendigos chegavam à conclusão de que não entendiam nada da filosofia dos sábios.

Moral: ninguém é sábio de barriga vazia.

Fernando Lago – Agosto de 2012