26 de jan. de 2011

Ouse!




Picha o seu nome no meu coração e diga que é seu
Amarre os meus pés como a um galináceo
E não me deixe caminhar pelos caminhos de outrora

Inventa um boato
Diz aos telejornais que não resisto ao seu charme
Me amordace num barquinho e atravesse o Oceano Atlântico a remo

Sequestre minhas poesias
Esconda minhas músicas
Roube minhas canetas
E peça o meu amor como resgate

Injeta um vírus que destrua do meu computador
Todas as imagens em que não há você
Mostra todo o seu poder a todo mundo
Que você tem escondido por detrás da sua íris

Descubra meus segredos
Anote meus pecados numa caderneta
Conquiste minha família
Hipnotize todo mundo e me deixe boquiaberto
Me deixe sem saída outra que não te amar também

Seja cruel
Leia O Príncipe, de Maquiavel
Estude as táticas de guerrilha de Mao Tsé-Tung
Desplatonize a metafísica
Aristotelize minha vidinha insossa
Socratize dialeticamente o meu estado estático

Dê um golpe de estado
Tome o meu coração
Expulsa os partidos opostos que ainda militam ali
Hasteie bandeiras com sua foto
Monte guarda no portão de entrada
Fiscaliza o movimento e diga com autoridade: é meu!

Seja cruel
Seja uma Hitler de saia e sem bigode
Uma Pinochet sem quepe e sem coturno
Proclame um AI5 cardiológico
Não me deixe escapar
Não me deixe solto por aí
Buscando o que não devo mais buscar

Ouse!
Deixe-me totalmente sem saída
Ouse, minha princesa
Minha Venus brasileira, ouse
Ouse, minha querida!
Ouse, criatura!
Só você poderia me salvar...

Fernando Lago - Janeiro de 2011

18 de jan. de 2011

POESIA INÉDITA



DA ARTE NÃO TÃO BELA DE CAIR – SEM METÁFORAS E COM ELAS – E LEVANTAR-SE TIRANDO SARRO DE SI MESMO E DO MUNDO, COMO SE A DOR NÃO EXISTISSE. E EXISTE?

Ou

POESIA PARA O GESSO DA KEU

Trêfego destino de tropeços e buracos
Surpresa!
De repente nos engolem sem avisar
Sem perguntar-se em que isso implicará!
E haja gessos para todas as coisas engessáveis!
Grazie a Dio!
Porque sentimentos não se engessam assim tão fácil!
Pietà, Dio!
Porque as fraturas do sentir também não são tão maleáveis.
Mas alquimiaremos, incessantes
Até cessar a própria dor
Planos mirabolantes
Pra engessar-nos do amor.

Fernando Lago, Janeiro de 2011

12 de jan. de 2011

O Trato dos Santos



Um dia, numa dessas praças celestes – dizem que são muitas – Santo Antônio encontrou Santo Expedito sentado, contemplando a terra com a habitual cruz de um lado e a não menos habitual palma do outro, distraído com suas causas impossíveis diárias. O ex-fernando sentou-se ao lado do colega de cânone e suspirou.

- Estava procurando por você, Pepê – intimidade de santos, ninguém pode condenar.

- Qual é o caso, Tonho? - IDEM.

- Pedi uma audiência com Aquele Que É, ontem.

- Para?

- Eu perguntei a Ele se nós dois podíamos trocar de posto.

- Como assim?

- Você não é o santo das causas impossíveis?

- É como me chamam.

- E eu o casamenteiro?

- Exatamente.

- Pois então, pedi ao Criador pra inverter os papéis.

- E Ele aceitou?

- Ele disse que o negócio é contigo.

Os olhos de Expedito brilharam. Casamenteiro? Que coisa bonita! E o fardo era bem mais leve. Era só unir uns casais, arrumar marido pras solteironas de carteirinha, ajudar moços a encontrarem moças que os procuram sem saber... Romântico!

- Mas como seria isso? – disse Expedito demonstrando mal disfarçado interesse – não dá pra mandar um anjo anunciar na Terra que nós trocamos de função. É publicidade demais. E você sabe que O Onisciente não gosta disso!

- Não, nada disso! Discuti isso com Ele também e já temos uma solução.

- Qual?

- Na Terra, fica tudo como está. Os que querem casar rezam pra mim e os que querem causas impossíveis rezam pra você.

- Mas então...

- Calma, rapaz! As mudanças serão só no sistema de recebimento de orações aqui do céu. Basta pedir pra Santa Clara, a padroeira da televisão, que cuida também do sistema de comunicação integrado do céu, pra inverter nossos cadastros. Daí a oração que for pra você cai pra mim e a oração que for pra mim cai pra você.

- Ah, entendi. Mas alguém já fez isso antes? – preocupou-se Expedito.

- Que eu saiba não – respondeu Antônio, persuasivo - Mais um motivo para você aceitar a proposta. Seremos revolucionários!

- Deixa desse papo de revolução, Tonho! Você sabe muito bem que essa palavra lembra acontecimentos desagradáveis do Princípio.

- Eu sei. Mas não tem nada a ver... Revolução é revolução! Aquela foi uma! Vá-se aos dicionários! Não pode achar que toda revolução refere-se àquela.

- Mas foi a primeira... Mas tudo bem, só me esclarece uma coisa, Tonho.

- Diga.

- Por que diab...

- Opa!

- Digo, por que motivos você quer meu cargo, se tem um tão bom?

- Ora, Pepê! Sou franciscano! Gosto de viver novos desafios!

- Entendo. Quando começamos?

- Amanhã.

- Já? Tudo bem...

Era uma noite comum. Expedito foi dar uma olhada nas orações da igreja de Nossa Senhora do Rosário pra ver o que é que rolava de especulações por casamentos por lá. Queria começar o novo cargo já com alguns casais arrumados e felizes.

Começou a entontecer-se com os pedidos. Exemplo. Julinha amava Ronaldo que estava chorando de amores por Ana que só tinha olhos pra Arnaldo que, por sua vez, sonhava com Patrícia que já namorava o Jaziel. Mas que negócio era esse? Isso não estava no contrato! Tinha que haver uma saída!

Convocou uma reunião com os anjos da guarda de cada um, cheio de idéias. Os anjinhos, bocejosos, lhe adiantaram que a coisa não era tão simples de se fazer.

- Mas vejam, meus caros – argumentou Expedito – é muito simples. Basta que façamos que mudem de idéia. Que o Ronaldo ame a Julinha e que o Arnaldo ame a Ana. E vice e versa pros dois. Deixemos em paz o Jaziel e a Patrícia, que já estão encaminhados.

- Mas, meu santo – disse uma das aladas criaturas – acredito que o senhor está se esquecendo de um negocinho que O Eterno inventou chamado Livre Arbítrio.

- Mas não dá nem pra interferir só um pouquinho?

- Como? A gente tenta guiar os humanos para o caminho certo, mas alguns não tem jeito mesmo. E o pior, não querem nem negociar! É fulano e pronto.

No fim do dia – se é que haja dias na eternidade – Santo Expedito foi procurar Santo Antônio, numa dessas praças celestiais de sempre. Queria suas causas impossíveis de volta.

Fernando Lago – Janeiro de 2011

9 de jan. de 2011

Encontros e reencontros




Texto publicado na coluna do Jornal Independente



Sou piolho de livraria. Ainda mais do que de biblioteca. A grande diferença de uma livraria para uma biblioteca é justamente o marketing empregado para vender livros num país em que muito pouco se lê. Apesar de ser gostoso estar numa biblioteca, aquela aura intelectual que paira no ar que se respira lá dentro, aquele silêncio de ouvir agulha cair no chão, o romantismo todo de se falar por bilhetinhos com a menina bonita que está lendo O pequeno príncipe compenetradamente, et cetera, et cetera... No entanto, a biblioteca se organiza como um organismo vivo. Complexo. Você é quem está atrás dos livros. Ninguém entra numa biblioteca por acaso, salvo os apaixonados pela bela moça fã de Saint Exupéry ou pela bibliotecária – coisa rara, porque as bibliotecárias, sem querer generalizar, nem sempre são tão simpáticas.

Na biblioteca nós procuramos os livros. Na livraria o livro é quem nos procura. Foi assim que o livro Hamlet e o filho do padeiro piscou pra mim numa livraria, se apaixonou por mim e, para me convencer a levá-lo como concubina literária, mostrou logo em letras garrafais o nome do seu autor: Augusto Boal. Não sabia do que se tratava, mas, após tantos encontros e reencontros com o escritor/teatrólogo, tive quase certeza que o livro era bom.

A primeira vez que ouvi falar de Augusto Boal foi em 02 de Maio de 2009, dia exato de sua morte. Eu participava de um encontro sobre a atualidade do pensamento do educador Paulo Freire e, mais especificamente, compunha uma mesa de debate acerca dos cinqüenta anos de publicação da Pedagogia do Oprimido, considerada sua obra de maior relevância. Um dos participantes pediu permissão para comentar e, com certo peso no olhar e na voz, citou um Jornal da TV para dizer que, naquele dia, tinha falecido o precursor do Teatro do Oprimido.

Confesso, não prestei muita atenção ao colega. Suas palavras foram jogadas no ar. Mas bem me lembrei delas quando vi o nome do Boal na ementa de uma oficina de teatro que fazia parte das atividades de um encontro de estudantes no Maranhão. Entrei na barca e não afundei. Mergulhei e consegui nadar, submerso no mar de exercícios e jogos teatrais que o sujeito que instruía a oficina ia conduzindo. Saí de lá decidido: assim que pisasse em sacro solo teixeirense ia indicar – impor – a todos os meus conhecidos envolvidos em teatro a leitura de Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. E lê-lo, se possível – tamanho era o acúmulo de livros que eu tinha a ler, e ainda hoje é assim; parece a dívida do Estado, que não acaba nunca.

Cumpri a primeira parte da decisão e, pra minha surpresa, o grupo de teatro já conhecia Boal e o estava estudando. Quanto à segunda parte, a da leitura, fui adiando, como é de meu feitio. Prática milenar e deplorável. Tem gente que adia por hobby. Acho que não sou assim. Acho. Mas adio feito um louco, compulsivamente. Culpa do tal do capitalismo, que nos ensinou que tempo é dinheiro.

Segui adiando, até que me encontrei com o referido livro de Boal, quando exercia a minha mania de piolho de livraria. Era uma autobiografia, mas foi a porta de entrada para ler também outros textos seus e outras obras completas, embora esteja ainda em débito com o Jogos para atores e não atores, que prometi ler depois. Vou adiando...

Fernando Lago – Novembro de 2010