7 de mar. de 2013

Crônicas do futuro: a batalha dos mundos distantes

Imagem: Batalha de Avaí, quadro de Pedro Américo - Museu Nacional de Belas Artes 


Em meados do século XXI Josué Tira-gosto disse que esse negócio de game on-line um dia ainda acaba destruindo o mundo. Josué Tira-gosto disse isso e ninguém o ouviu. E nem poderia ouvir, visto que Josué Tira-gosto era um homem com uma capacidade muito peculiar: podia ficar invisível. Invisível, inaudível, inodoro – isso nem sempre. Bastava Josué Tira-gosto colocar o seu uniforme de gari e ninguém mais o via, a não ser aqueles que lhe acompanhavam na lida, seus iguais, invisíveis, garis.
Passava um conhecido, desviava o olhar. Outro conhecido, o olhar no horizonte. Outro dia foi tirar satisfação com Tonhão Mestre-de-obras e ouviu a esfarrapada desculpa de que o amigo não lhe reconhecera. Mas ora vejam!
Esta, entretanto, não é a história de Josué Tira-gosto, que era assim chamado porque nos fins de semana gastava seu tempo na porta do Bar de Gertrudes Caçarola comendo carne gordurosa e nada higiênica, hábito que o fez ir a óbito muito antes desta historia acontecer deixando-lhe a oportunidade de entrar nela apenas para serem citadas as suas proféticas palavras, quando se referia ao hábito inocente da filha de jogar o “jogo do momento” dos adolescentes da época. 
Vários anos depois, quando Josué Tira-Gosto havia muito já abotoara o paletó de madeira, o jogo se tornou mania internacional, chegando à casa e ao gosto do povo com a força e o prestígio que tinham as telenovelas no final do século XX e início do século XXI. Aos poucos, o jogo on-line Batalha dos Mundos Distantes fora se tornando parte do cotidiano dos jovens, que iam ficando velhos, mas não perdiam a mania de jogá-lo sempre. No fim do século XXI cada pessoa tinha seu próprio aparelho computador no quarto. Além disso, tudo acessava a internet – exceto o automóvel, que depois de alguns acidentes o Departamento de Trânsito determinou que fossem arrancadas todas as antenas dos veículos. Fora isso, tudo. Desde aparelhos telemóveis a brincos. E estes eram os de tecnologia mais avançada: quanto menor o material do produto, mais avançada era a tecnologia empregada no seu funcionamento.
Mas ninguém aqui precisa de uma aula de nanotecnologia hoje. O que quero contar é sobre os rumos que tomou a sociedade depois que o jogo se tornou mania nacional.
Cada pessoa criava o seu perfil e imediatamente começava a jogar. E imediatamente viciava. Era hábito: sempre quando retornavam de suas atividades diárias iam direto para qualquer aparelho que acessava a internet para tentar melhorar um pouco o seu progresso no jogo. Como era on-line, o jogo se atualizava automaticamente quando necessário, de forma que estava sempre mais moderno e mais atraente.
Dentro do jogo as pessoas faziam fortuna de acordo com os feitos no mundo em que estava inserido. Como era uma batalha dos mundos, cada membro da rede escolhia a que mundo queria pertencer e, dentro do jogo, viviam em guerra. Saqueavam quem pertencia a um mundo diferente, faziam negócios, acordos, guerras, tréguas, traições, conspirações... Enfim, era uma maneira de escapar da monotonia dos dias.
Logo surgiram pessoas que detinham mais fortuna que as outras e estas, usando o poder de negociar bens como armas, propriedades, vidas, tudo dentro do jogo, foram se criando como forma de governo de cada mundo. Vendo como uma forma de aumentar o lucro, a empresa que criava o jogo decidiu comercializar valores. Funcionava assim: você pagava um valor x, dinheiro da vida real e recebia um valor y, dentro do jogo. Foi um sucesso. No começo, com 1 dólar você comprava 20 palins, que era a moeda geral do jogo. Chegou uma época que o Palin transformou-se em uma moeda viva e tinha gente vendendo 1 Palin por um dólar. Logo, quem passava por necessidades na vida real, vendia os seus palins no jogo e criou-se um comercio dúbio, complicado e ao mesmo tempo simples.
Logo, quando uma pessoa era rica em Palin significava que ela era rica na vida real também ou, no mínimo, poderia ser, se vendesse os seus palins. Surgiram, então, hackers inescrupulosos que tentavam criar macetes para aumentar as riquezas em palins e assim, conseguintemente, ficarem ricos de verdade. Foi difícil para a empresa conter os ataques ao site. Mais difícil ainda foi conter os ataques à sede física da empresa por pessoas que, do dia para a noite, apareciam com 0,0 palins no jogo.
Então, um belo dia, aparece morto em seu apartamento um sujeito solteirão, nerd, muito inteligente, que tinha um verdadeiro império no jogo e era um dos governantes da Dinastia do Mundo B. A primeira suspeita foi de assalto: os bandidos o teriam rendido e obrigado a passar os palins do jogo para o nome de usuário deles; ele por se negar morreu.
Mas a investigação acabou indo para outro viés. Confessadamente, um usuário disse que matou o nerd porque ele tinha um império muito grande. Para confirmar tudo, no dia seguinte o tal usuário, de quem ainda não se sabia a identidade verdadeira, apareceu com todo o império da vítima assassinada, a empresa que administrava o jogo não sabia explicar o porquê.
Logo muitas mortes semelhantes começaram a acontecer e, por mais que a polícia exigisse quebra de sigilo das contas, as antigas leis de privacidade tinham permitido que muitas pessoas tivessem criado contas com nomes falsos sem fornecer informações verdadeiras.  
Foi aí que o governo proibiu o Batalha dos Mundos Distantes, causando comoção geral na Nação. Temendo que lhes acontecesse o mesmo trágico infortúnio, outros países cuja população também jogava, acataram à ideia decretando a proibição do jogo. Os protestos tomaram um mundo. Queriam tirar a única diversão do povo. Só porque um louco psicopata matou, não significa que era por influência do jogo, ora essa, o assassino já estava nele.  E daí que foram mais de cinco loucos psicopatas!? Dava no mesmo. O jogo era bom, o ser humano é que era ruim.
A coisa foi parar na ONU. Alguns países, como sempre acontece, não viram problema nenhum no jogo. Devia continuar. Em off ficou-se sabendo que eram os países que mais lucravam com o game, econômica e culturalmente. Enquanto o povo jogava, não se lembrava de fiscalizar a administração, de fazer protesto, de reclamar da corrupção etc. Da mesma forma, o jogo fazia rodar a economia consideravelmente, pois o negócio do câmbio da moeda nacional para Palin dava certo lucro ao Estado que fosse esperto de cobrar imposto em cima da operação. Dessa forma, para alguns países, acabar com o jogo e consequentemente com o Palin, seria um desastre econômico e até mesmo político.
Entretanto, os países que queriam o fim do Batalha dos Mundos mantiveram o pé firme e convocaram instituições a unirem-se ao coro. As famílias e amigos dos mortos, movimentos sociais anti-jogos que já existiam em grande número, igrejas que achavam que o jogo era coisa do demônio, movimentos saudosistas anti-tecnologia, todos esses grupos criaram uma grande pressão em cima dos outros países. A única saída foi a ameaça. Se o jogo acabasse mundialmente, haveria sansões, corte de relações e até ataques militares. Os protestos continuaram, a ameaça foi mantida e no dia 21 de Dezembro de 2112 um míssil nuclear explodiu em um país pequeno.
A partir daquele dia, a Batalha dos Mundos distantes tornou-se uma batalha de um mundo só. E perto, muito perto de todo mundo...
Fernando Lago – Fevereiro de 2013