Ela estava sentada, contemplando os sobrinhos brincarem no
parque. Sobrinhos! Quem diria? Filhos da sua irmã, que era dez anos mais nova
que ela. Riu com a referência mental à antiga expressão popular: sim, ela era
um exemplo vivo de alguém que ficou pra titia.
- Tia, olha o que eu consigo fazer! – um dos meninos estava
prestes a saltar de um galho de árvore e ela não teria tempo de chegar até lá.
Já estava imaginando o tombo e o choro, quando percebeu que dois braços magros
seguraram o menino antes que ele se estatelasse no chão.
- Cara! Que mania que você tem de chegar na hora certa! –
disse beijando o amigo no rosto, depois que o sobrinho já estava no chão,
brincando novamente.
- Isso é uma reclamação?
- Claro que não. Como vai você, amigo?
- Vou bem... amiga.
Era notável que a palavra saía com mais naturalidade da boca
dela do que a dele e qualquer expectador atento que estivesse observando o
casal iria perceber que eles tinham tido um passado. Mas, dirá o leitor,
Fernando, todo mundo tem passado! Mas, leitor detalhista, não falo simplesmente
da passagem do tempo e sim de que o passado que tiveram teve acontecimentos que
interferiram na relação e no uso da palavra “amiga”. Mesmo o leitor implicante
já deve ter se apercebido dos fatos: o amigo fora, em um passado remoto,
apaixonado por aquela mulher que o beijara no rosto e o chamava de amigo com
tanta naturalidade. Mas era tudo passado. Outros amores vieram, outras
decepções vieram e continuaram amigos.
Ela olhava pro amigo com uma simpatia fraternal. Não era um
rapaz horripilante. Melhorara muito nos últimos anos, mas, mesmo na época em
que se declarara pra ela, não era um rapaz de todo feio. Não era também um galã
da novela das oito, mas era educado, doce, cavalheiro e sempre sabia o que
dizer. Tivera vontade de amá-lo, de todo coração. Se ele gostava tanto dela,
merecia ser correspondido, mas ela nunca conseguiu amá-lo senão como um amigo
de todas as horas. Estranho isso, não? O tempo passou e ele se tornou um rapaz
mais bem apanhado, elegante, continuava educado e doce e ela tinha certeza que
seria um ótimo marido, mas não o se arrependia de ter mantido a amizade. Em
verdade, a amizade dele era preciosa e ela não queria perder. Era com carinho
que escutava todas as suas angústias, sabia de cor todos os amores que ele teve
depois dela e acompanhava as desgraças do amigo com verdadeira angústia.
O mesmo não acontecia com ela. Ela não compartilhava quase
nada com ele. Só dizia quando iniciava ou terminava um namoro. E raramente
demonstrava a sua dor quando acontecia algum rompimento sério. Aliás, poucos
dos rompimentos foram sérios. Nunca encontrara nenhum homem que ela pudesse
dizer: por este vale a pena sofrer, por este eu vou até o fim do mundo, por
este choraria...
Estranho, tinha certeza que choraria pelo amigo, como chorara
muitas vezes. Amigo também briga.
- Você continua linda...
- Ah, não começa, cara.
- Não se preocupe, só estou elogiando uma amiga.
- A amiga agradece.
Riram e sentaram-se no banco do parque. Ela deu algumas
broncas nos sobrinhos – eram dois, um menino e uma menina, e o menino estava
prestes a subir na árvore outra vez – e reiniciaram a conversa.
- Onde está a sua irmã?
- Trabalhando, como sempre. Aquele imprestável do marido
dela...
- Tá bom, tá bom. Esquece ele. Sempre que você fala dele só
falta ter crises de nervos...
- É... Você sabe que minha irmã é...
- A pessoa que você mais ama nesse mundo, eu sei.
- Pois é... não suporto que a maltratem.
- Sabe quem eu encontrei na rua? – disse, mudando de assunto
bruscamente.
- Quem?
- O Zé.
- Que Zé? Tanto Zé que existe!
- O Zé Agnaldo, poxa, o único cara que sabe da minha vida
tanto quanto você.
- Ah, o Zé, aquele doido! Não sei como você confiou tanto
naquele cara.
- Ainda tem ciúmes dele?
- Que ciúmes, nunca tive ciúmes dele!
- Teve sim...
- Tive nada! Eu só não achava adequado você ficar contando
essas coisas pra ele...
- Então... ciúmes!
- Ah, me poupe! Com tanta gente boa por aí, você vai confiar
logo naquele doido de pedra!
- Mas eu fiz bem, ele nunca contou nada pra ninguém...
- Se isso é uma insinuação...
- Não é uma insinuação! Para de ser tão autodefensiva!
- Eu não estou sendo autodefensiva, só...
- Está bem, em todo caso, o Zé me fez uma pergunta
interessante...
- Que pergunta?
- Se eu estava amando...
- Nossa! Que pergunta interessante. E você respondeu o que?
- Que não, claro!
- Ah bom, pensei que você estava amando e não me tinha
contado. Aí sim você ia ver o que é ciúmes.
- Você é uma amiga muito possessiva.
- Eu sei.
- Ele fez mais perguntas.
- Que abusado! Quem ele pensa que é, o Jô Soares?
- Boba!
- O que ele perguntou?
- Por quantas mulheres eu já tinha me apaixonado.
- E você respondeu o que?
- Que não sabia, ora.
- Mas eu sei, foram umas 15.
- “Umas” 15 não é saber.
- É, ninguém sabe, na verdade, porque antes de te conhecer
provavelmente você já tinha se apaixonado por
outras tantas adolescentes.
- É, provavelmente.
- E ele?
- Ele disse que estava perguntando aquilo porque cansou da
vida que leva.
- Como assim? Que vida que ele leva?
- De garanhão.
- Arre!
- Ele disse que queria se apaixonar de verdade, que nem eu.
- Que nem você? Pra sofrer que nem você?
- Foi o que eu disse pra ele. Mas ele disse que sofrer de
amor é nobre.
- Nobre! Francamente! Ele é pegador, se diverte o tempo todo
e preferia sofrer de amor? Que idiotice! Então ele queria um futuro que nem o
seu? E ainda por cima sofrendo de amor! Solteiro e solitário...
- Ao que me conste, a senhorita também nunca se casou...
- Mas também nunca sofri de amor.
- Isso é verdade...
Calaram-se, olhando pro nada. Os sobrinhos dela continuavam
brincando ao redor. Duas ou três vezes ela deu um olhar mais áspero pro menino,
que insistia em tentar subir na árvore sempre que percebia alguma distração da
tia.
- Sabe o que ele me perguntou mais? – disse o amigo, depois
de alguns instantes.
- E ainda tem mais?
- É, a conversa foi longa.
- E o que ele perguntou mais?
- Ele perguntou, entre todas as mulheres que já amei e não
corresponderam, se eu tivesse a chance de escolher qualquer uma delas, qualquer
uma, mas só uma, qual delas eu escolheria...
Ele esperou ela perguntar, mas ela apenas se calou, como se
suas palavras fossem difíceis de absorver. Ou talvez já soubesse a resposta. Ele,
porém, achou que devia falar, mesmo que ela já soubesse.
- Sabe o que eu respondi?
- Que escolheria a mim?
- Você não está se achando demais não? – retrucou ele rindo
folgadamente – como pode ter tanta certeza que eu te escolheria?
- Por dois motivos. Primeiro porque eu sou linda,
irresistível et Cetera, et Cetera. Segundo... bem, eu te conheço há quanto
tempo, cara?
- Sei lá, uns vinte anos... talvez vinte e um.
- Pois é. Eu te conheço muito bem, seu besta! Você não me
contaria isso tudo se não tivesse escolhido a mim.
- Por que acha isso?
- Por que te conheço, já disse. Toda vez que você vem com uma
dessas é pra falar comigo que... ah, não vale a pena discutir por isso.
- Não vale mesmo. Mas você errou.
- Como é?
- Você errou. Não respondi você.
Ela pareceu meio sem graça, as bochechas ficaram rosadas.
- E... e quem foi que você escolheu?
- Eu disse a ele que não escolheria ninguém. Que preferia
conhecer uma pessoa nova.
- Nossa! Uma resposta realmente excelente.
- É, foi isso que eu respondi a ele, mas...
- Mas...?
- Mas quando cheguei em casa e me vi sozinho a pergunta
voltou mais séria. E, bom, você tem razão. Eu escolheria você.
- Ah, por favor!
- Não, não se ofenda, eu não estou te cantando de novo não.
Acontece que é isso que veio na minha cabeça.
- Você diria isso pra qualquer moça que já amou e que
estivesse por perto na hora.
- Não!
- Está bem, vamos encerrar essa discussão! O Zé de perguntou
mais alguma coisa?
- Bem... pra falar a verdade, fez uma última perguntinha sim.
- Qual?
- Perguntou de você.
- De mim?
- Sim.
- O que exatamente ele...
- Perguntou se você estava casada.
- Você disse que sim, suponho.
- Por que supôs que sim?
- Por que você é ciumento. E porque é meu amigo, pra me
livrar de perturbações, sempre soube que acho esse cara repugnante.
- Errou nas duas. Como você enfatiza sempre, somos só amigos
e eu superei meus sentimentos por você...
- É, mas não perde uma oportunidade de me cantar...
- Ora, porque eu sou solteiro e você também e você é linda.
Só isso. Mas, como eu ia dizendo, errou nas duas.
- Então você não é meu amigo.
- Isso eu sou, com certeza. Mas não me vejo na obrigação de
te livrar de perturbações. Inclusive, dei seu telefone pra ele...
- Você o quê??? Ficou doido? Idiota!
- Calma, calma – disse desviando dos tapas de leve que amiga
lhe dava – só estava brincando. Ele já sabia que você esta solteira ele só fez
uma pergunta retórica.
- Que pergunta retórica?
- Por que será que ela nunca casou hein?
Ela suspirou fundo:
- Acho que nem eu sei... Tantos caras que já passaram por
minha vida. Sempre acabou sem sofrimento, nunca sofri por perder nenhum deles. Acho
que nunca os tive, como poderia perdê-los? Também nunca me tiveram... Alguns
até valeriam a pena...
- E por que não eu?
- Lá vem você.
- Desculpa. Me escapuliu a frase. É que enquanto você falava
eu lembrava da música.
- Acho que sei por que você me escolheria...
- Guarde a resposta só pra você.
- Certo.
- E acho que sei por que você nunca se casou.
- Ah, sabe, por quê?
- Pensei que você fosse me mandar guardar a resposta só pra
mim.
- Não, não sou tão tonto quanto você.
- Obrigado pela sinceridade.
- Vamos, responda.
- Ora, você é de longe a mulher mais bonita que eu já
conheci. E não adianta protestar, me deixa terminar. Já diversos homens se apaixonaram
por você, alguns tiveram o privilégio de te beijar, de passar horas contigo,
até de te namorar, mas você sempre, ao cabo de algum período, os dispensava.
Normalmente eu diria que você não sabe amar. Mas, bem, o que eu acho é que você
tem medo.
- Medo? De quê?
- De me perder.
- Te perder? Não compreendo...
- Você sabe de tudo sobre mim. Independente de qualquer
coisa, você é a minha melhor amiga. E sabe que eu provavelmente nunca vou ter
um par nesse mundo...
- Não diga isso!
- É a verdade. E sabendo disso, você, talvez, pense que eu
vou sofrer demais, vou estar sozinho, não apenas solteiro, sozinho de tudo. E é
por isso que você não casa. Porque você me ama. Do seu jeito, mas me ama.
- Você devia ser psicólogo.
Eles riram muito daquilo tudo, uma risada que havia muito
tempo não davam. Eram dois amigos, cheios de problemas consigo mesmo e com o
mundo, mas riam, riam muito, riram tanto que nem viram quando o sobrinho dela
conseguira finalmente quebrar um braço ao despencar da árvore do parque...
Fernando Lago – Fevereiro
de 2013