18 de fev. de 2013

Por que não eu?




Ela estava sentada, contemplando os sobrinhos brincarem no parque. Sobrinhos! Quem diria? Filhos da sua irmã, que era dez anos mais nova que ela. Riu com a referência mental à antiga expressão popular: sim, ela era um exemplo vivo de alguém que ficou pra titia.

- Tia, olha o que eu consigo fazer! – um dos meninos estava prestes a saltar de um galho de árvore e ela não teria tempo de chegar até lá. Já estava imaginando o tombo e o choro, quando percebeu que dois braços magros seguraram o menino antes que ele se estatelasse no chão.

- Cara! Que mania que você tem de chegar na hora certa! – disse beijando o amigo no rosto, depois que o sobrinho já estava no chão, brincando novamente.

- Isso é uma reclamação?

- Claro que não. Como vai você, amigo?

- Vou bem... amiga.

Era notável que a palavra saía com mais naturalidade da boca dela do que a dele e qualquer expectador atento que estivesse observando o casal iria perceber que eles tinham tido um passado. Mas, dirá o leitor, Fernando, todo mundo tem passado! Mas, leitor detalhista, não falo simplesmente da passagem do tempo e sim de que o passado que tiveram teve acontecimentos que interferiram na relação e no uso da palavra “amiga”. Mesmo o leitor implicante já deve ter se apercebido dos fatos: o amigo fora, em um passado remoto, apaixonado por aquela mulher que o beijara no rosto e o chamava de amigo com tanta naturalidade. Mas era tudo passado. Outros amores vieram, outras decepções vieram e continuaram amigos.  

Ela olhava pro amigo com uma simpatia fraternal. Não era um rapaz horripilante. Melhorara muito nos últimos anos, mas, mesmo na época em que se declarara pra ela, não era um rapaz de todo feio. Não era também um galã da novela das oito, mas era educado, doce, cavalheiro e sempre sabia o que dizer. Tivera vontade de amá-lo, de todo coração. Se ele gostava tanto dela, merecia ser correspondido, mas ela nunca conseguiu amá-lo senão como um amigo de todas as horas. Estranho isso, não? O tempo passou e ele se tornou um rapaz mais bem apanhado, elegante, continuava educado e doce e ela tinha certeza que seria um ótimo marido, mas não o se arrependia de ter mantido a amizade. Em verdade, a amizade dele era preciosa e ela não queria perder. Era com carinho que escutava todas as suas angústias, sabia de cor todos os amores que ele teve depois dela e acompanhava as desgraças do amigo com verdadeira angústia.

O mesmo não acontecia com ela. Ela não compartilhava quase nada com ele. Só dizia quando iniciava ou terminava um namoro. E raramente demonstrava a sua dor quando acontecia algum rompimento sério. Aliás, poucos dos rompimentos foram sérios. Nunca encontrara nenhum homem que ela pudesse dizer: por este vale a pena sofrer, por este eu vou até o fim do mundo, por este choraria...

Estranho, tinha certeza que choraria pelo amigo, como chorara muitas vezes. Amigo também briga.

- Você continua linda...

- Ah, não começa, cara.

- Não se preocupe, só estou elogiando uma amiga.

- A amiga agradece.

Riram e sentaram-se no banco do parque. Ela deu algumas broncas nos sobrinhos – eram dois, um menino e uma menina, e o menino estava prestes a subir na árvore outra vez – e reiniciaram a conversa.

- Onde está a sua irmã?

- Trabalhando, como sempre. Aquele imprestável do marido dela...

- Tá bom, tá bom. Esquece ele. Sempre que você fala dele só falta ter crises de nervos...

- É... Você sabe que minha irmã é...

- A pessoa que você mais ama nesse mundo, eu sei.

- Pois é... não suporto que a maltratem.

- Sabe quem eu encontrei na rua? – disse, mudando de assunto bruscamente.

- Quem?

- O Zé.

- Que Zé? Tanto Zé que existe!

- O Zé Agnaldo, poxa, o único cara que sabe da minha vida tanto quanto você.

- Ah, o Zé, aquele doido! Não sei como você confiou tanto naquele cara.

- Ainda tem ciúmes dele?

- Que ciúmes, nunca tive ciúmes dele!

- Teve sim...

- Tive nada! Eu só não achava adequado você ficar contando essas coisas pra ele...

- Então... ciúmes!

- Ah, me poupe! Com tanta gente boa por aí, você vai confiar logo naquele doido de pedra!

- Mas eu fiz bem, ele nunca contou nada pra ninguém...

- Se isso é uma insinuação...

- Não é uma insinuação! Para de ser tão autodefensiva!

- Eu não estou sendo autodefensiva, só...

- Está bem, em todo caso, o Zé me fez uma pergunta interessante...

- Que pergunta?

- Se eu estava amando...

- Nossa! Que pergunta interessante. E você respondeu o que?

- Que não, claro!

- Ah bom, pensei que você estava amando e não me tinha contado. Aí sim você ia ver o que é ciúmes.

- Você é uma amiga muito possessiva.

- Eu sei.

- Ele fez mais perguntas.

- Que abusado! Quem ele pensa que é, o Jô Soares?

- Boba!

- O que ele perguntou?

- Por quantas mulheres eu já tinha me apaixonado.

- E você respondeu o que?

- Que não sabia, ora.

- Mas eu sei, foram umas 15.

- “Umas” 15 não é saber.

- É, ninguém sabe, na verdade, porque antes de te conhecer provavelmente você já tinha se apaixonado por 
outras tantas adolescentes.

- É, provavelmente.

- E ele?

- Ele disse que estava perguntando aquilo porque cansou da vida que leva.

- Como assim? Que vida que ele leva?

- De garanhão.

- Arre!

- Ele disse que queria se apaixonar de verdade, que nem eu.

- Que nem você? Pra sofrer que nem você?

- Foi o que eu disse pra ele. Mas ele disse que sofrer de amor é nobre.

- Nobre! Francamente! Ele é pegador, se diverte o tempo todo e preferia sofrer de amor? Que idiotice! Então ele queria um futuro que nem o seu? E ainda por cima sofrendo de amor! Solteiro e solitário...

- Ao que me conste, a senhorita também nunca se casou...

- Mas também nunca sofri de amor.

- Isso é verdade...

Calaram-se, olhando pro nada. Os sobrinhos dela continuavam brincando ao redor. Duas ou três vezes ela deu um olhar mais áspero pro menino, que insistia em tentar subir na árvore sempre que percebia alguma distração da tia.

- Sabe o que ele me perguntou mais? – disse o amigo, depois de alguns instantes.

- E ainda tem mais?

- É, a conversa foi longa.

- E o que ele perguntou mais?

- Ele perguntou, entre todas as mulheres que já amei e não corresponderam, se eu tivesse a chance de escolher qualquer uma delas, qualquer uma, mas só uma, qual delas eu escolheria...

Ele esperou ela perguntar, mas ela apenas se calou, como se suas palavras fossem difíceis de absorver. Ou talvez já soubesse a resposta. Ele, porém, achou que devia falar, mesmo que ela já soubesse.

- Sabe o que eu respondi?

- Que escolheria a mim?

- Você não está se achando demais não? – retrucou ele rindo folgadamente – como pode ter tanta certeza que eu te escolheria?

- Por dois motivos. Primeiro porque eu sou linda, irresistível et Cetera, et Cetera. Segundo... bem, eu te conheço há quanto tempo, cara?

- Sei lá, uns vinte anos... talvez vinte e um.

- Pois é. Eu te conheço muito bem, seu besta! Você não me contaria isso tudo se não tivesse escolhido a mim.

- Por que acha isso?

- Por que te conheço, já disse. Toda vez que você vem com uma dessas é pra falar comigo que... ah, não vale a pena discutir por isso.

- Não vale mesmo. Mas você errou.

- Como é?

- Você errou. Não respondi você.

Ela pareceu meio sem graça, as bochechas ficaram rosadas.

- E... e quem foi que você escolheu?

- Eu disse a ele que não escolheria ninguém. Que preferia conhecer uma pessoa nova.

- Nossa! Uma resposta realmente excelente.

- É, foi isso que eu respondi a ele, mas...

- Mas...?

- Mas quando cheguei em casa e me vi sozinho a pergunta voltou mais séria. E, bom, você tem razão. Eu escolheria você.

- Ah, por favor!

- Não, não se ofenda, eu não estou te cantando de novo não. Acontece que é isso que veio na minha cabeça.

- Você diria isso pra qualquer moça que já amou e que estivesse por perto na hora.

- Não!

- Está bem, vamos encerrar essa discussão! O Zé de perguntou mais alguma coisa?

- Bem... pra falar a verdade, fez uma última perguntinha sim.

- Qual?

- Perguntou de você.

- De mim?

- Sim.

- O que exatamente ele...

- Perguntou se você estava casada.

- Você disse que sim, suponho.

- Por que supôs que sim?

- Por que você é ciumento. E porque é meu amigo, pra me livrar de perturbações, sempre soube que acho esse cara repugnante.

- Errou nas duas. Como você enfatiza sempre, somos só amigos e eu superei meus sentimentos por você...

- É, mas não perde uma oportunidade de me cantar...

- Ora, porque eu sou solteiro e você também e você é linda. Só isso. Mas, como eu ia dizendo, errou nas duas.

- Então você não é meu amigo.

- Isso eu sou, com certeza. Mas não me vejo na obrigação de te livrar de perturbações. Inclusive, dei seu telefone pra ele...

- Você o quê??? Ficou doido? Idiota!

- Calma, calma – disse desviando dos tapas de leve que amiga lhe dava – só estava brincando. Ele já sabia que você esta solteira ele só fez uma pergunta retórica.

- Que pergunta retórica?

- Por que será que ela nunca casou hein?
Ela suspirou fundo:

- Acho que nem eu sei... Tantos caras que já passaram por minha vida. Sempre acabou sem sofrimento, nunca sofri por perder nenhum deles. Acho que nunca os tive, como poderia perdê-los? Também nunca me tiveram... Alguns até valeriam a pena...

- E por que não eu?

- Lá vem você.

- Desculpa. Me escapuliu a frase. É que enquanto você falava eu lembrava da música.

- Acho que sei por que você me escolheria...

- Guarde a resposta só pra você.

- Certo.

- E acho que sei por que você nunca se casou.

- Ah, sabe, por quê?

- Pensei que você fosse me mandar guardar a resposta só pra mim.

- Não, não sou tão tonto quanto você.

- Obrigado pela sinceridade.

- Vamos, responda.

- Ora, você é de longe a mulher mais bonita que eu já conheci. E não adianta protestar, me deixa terminar. Já diversos homens se apaixonaram por você, alguns tiveram o privilégio de te beijar, de passar horas contigo, até de te namorar, mas você sempre, ao cabo de algum período, os dispensava. Normalmente eu diria que você não sabe amar. Mas, bem, o que eu acho é que você tem medo.

- Medo? De quê?

- De me perder.

- Te perder? Não compreendo...

- Você sabe de tudo sobre mim. Independente de qualquer coisa, você é a minha melhor amiga. E sabe que eu provavelmente nunca vou ter um par nesse mundo...

- Não diga isso!

- É a verdade. E sabendo disso, você, talvez, pense que eu vou sofrer demais, vou estar sozinho, não apenas solteiro, sozinho de tudo. E é por isso que você não casa. Porque você me ama. Do seu jeito, mas me ama.

- Você devia ser psicólogo.

Eles riram muito daquilo tudo, uma risada que havia muito tempo não davam. Eram dois amigos, cheios de problemas consigo mesmo e com o mundo, mas riam, riam muito, riram tanto que nem viram quando o sobrinho dela conseguira finalmente quebrar um braço ao despencar da árvore do parque...


Fernando Lago – Fevereiro de 2013
   


5 de fev. de 2013

Você, tão menina



ADVERTÊNCIA

Há algum tempo atrás eu postei neste mesmo humilde, modesto e lindíssimo blog uma poesia-música que até então estava incompleta. Não muito tempo depois eu consegui terminar a segunda parte, mas não cumpri a promessa de postá-la aqui. Hoje, anos depois, venho agora quitar minha dívida com minha meia dúzia de leitores, que com toda certeza nem lembram mais de mim. 

Você, tão menina


Você
Tão menina
Malina, tanto desafina o meu coração
Beleza felina
Maquina tanta coisa fina pra minha paixão

Tão bem
Quanto voar
É me por à sua frente para te admirar
Teu ar
Me oxigenar
Parar, te ter na mente, comigo levar

Rosto, rastro, pasto exposto
Um trovoar de trovador
Posto, casto, parto, porto
Marina lá, o cais do amor

Você
Tão pequena
Morena, musa mais serena do versificar
Teu riso envenena
Acena e eu faço a minha cena pra te conquistar

Tão bom quanto sonhar
Levar teu rosto à lente desse meu olhar
Sorrir a te mimar
Calar pra ver se sente o que tento falar

Fundo, findo, vindo, afundo
Meus versos são pra te cantar
Mundo lindo, brindo, inundo
Chuva de amor pra te banhar

Rosto casto, vasto encosto
Musa serena do versar
Mundo findo indo a fundo
Na mente, comigo levar...

Fernando Lago – Junho/Julho de 2010