Faltando alguns minutos para o exame prático o
telefone celular toca o hit do momento, coisa que não surpreende nenhum dos
circunstantes, visto que o sujeito tinha mesmo cara de quem gosta de um bom
rebolejo.
- Sou eu, pode falar.
- Aqui é o deputado Peixoto, lembra-se de mim?
- Claro, como não lembraria?
- Pois é, gostaria de um favor enorme seu.
- O que estiver ao meu alcance, excelência.
- Não precisa me chamar de excelência, estamos entre
amigos. Olha só, hoje tem na sua lista aí um Marivaldo Carneiro...
- Só um minutinho, deputado – disse ele e, sabendo
mais ou menos aonde ia aquela conversa, afastou-se dos candidatos que
aguardavam o início do exame, isolando-se à sombra de uma árvore que havia no
terreiro do Departamento de Trânsito.
- Pode falar agora.
- Muito bem, esse Marivaldo Carneiro é filho de
Renaldo Carneiro, que vem a ser dono da Carneiro eventos, que por um feliz
acaso patrocinou minha campanha... o senhor está entendendo onde quero chegar?
- Sim, mas devo perguntar uma coisa.
- Que coisa?
- Esse rapaz sabe mesmo dirigir? Porque tem coisa que
a gente pode maneirar, pode ser nervosismo tal, geralmente a gente reprova o
candidato, mas, quando é conhecido, a gente dá uma aliviada, né... Mas a gente
não pode aprovar qualquer um...
- Mas não é qualquer um, o senhor não confia em mim?
- Claro, confio, deputado, só estou falando...
- Tudo bem, o senhor é um profissional. Se ele for
realmente ruim, o reprove – o tom do deputado já não era tão cordial – não
estou te pedindo para fazer nada além do que o senhor faz para seus conhecidos.
E eu sou seu conhecido, não sou?
- Claro que é, deputado. Pode deixar, ajudarei da
maneira que puder.
Desligou o telefone e encaminhou-se aos candidatos,
que já aguardavam impacientes. Um sujeito magro e miúdo resmungava e o nosso
avaliador só pôde ouvir as últimas palavras: “...tudo que é público é essa
merda mesmo”.
- Muito bem – disse com a prancheta na mão – vamos iniciar
com o senhor... Marivaldo Carneiro. – E disse consigo: “Tomara que não seja tão
ruim, o moleque”.
O rapaz devia ter dezoito ou dezenove anos. Cara de
arrogante, jeito de moleque inconsequente. “Pela batida da porta do carro se
conhece o caráter de um homem”, pensou o avaliador, e não gostara nada, nada do
caráter desse Carneiro, que antes mesmo de ele declarar iniciado o exame já
dava a partida ao carro e começava a fazer as manobras de garagem. Só essa
atitude já lhe cabia a perda de alguns pontos. Depois tocou os cones com a
lateral do veículo, mais alguns pontos, aliás, menos alguns pontos. Por fim, e
só quando o carro parou que o avaliador pôs reparo, o motorista estava sem o
cinto de segurança, o que lhe caberia a reprovação imediata. Felizmente para o
avaliador e para o avaliado nenhum dos outros candidatos podiam ver esses
detalhes da prova, devido à distância que lhes era imposta entre o local de
espera e o local de avaliação. O sujeito saiu do carro com a mesma arrogância,
com a mesma cara de bunda, mas com ar de satisfação, como se tivesse feito o
melhor estacionamento do mundo, ao passar pelo avaliador perguntou:
- E aí, como fui?
- O resultado é publicado no nosso site em até 48
horas – disse friamente, o rapaz saiu com o ar irritadiço.
Demorou-se dois minutos a decidir em qual quadrinho
marcava um xis: se no de aprovado ou no de reprovado. Não tinha muito tempo de
ponderar. Aprovou-o. E deu sequência aos exames.
Alguns dias depois o telefone toca, o mesmo número e a
mesma voz do dia dos exames: ele sabia quem era.
- Estou muito satisfeito, se precisar de alguma coisa
é só me procurar nesse número.
- Muito obrigado, deputado.
Passaram-se dias, meses, semanas. Já estava o episódio
esquecido, esfriado, morto e enterrado. Ia o nosso avaliador pela avenida
quando vê, com os próprios olhos, um carro de luxo se descontrolar, bater num
poste e ainda de quebra atropelar uma senhora não tão senhora de si que no
momento atravessava a rua distraída (distraída ela, senhora, não a rua).
Seguindo o instinto humano de ajudar o outro (ou de
curiosidade, quem sabe), o nosso avaliador parou o carro e foi primeiro ver a
vítima do atropelamento, que expirara no mesmo momento, o que era trágico, mas
para o que qualquer ajuda seria vã. Em seguida foi até o carro e qual não foi a
sua surpresa em reconhecer o tal Marivaldo Carneiro, coisa que o leitor já deve
estar desconfiado que fosse acontecer desde o início do parágrafo anterior.
Carneiro estava consciente, apenas estagnado pelo
susto do acidente. Olhava a frente do carro com os olhos vidrados e as mãos
trêmulas.
- Você está bem? – perguntou o avaliador – não se
machucou?
- A mulher morreu?
- Infelizmente sim.
- Tô fudido, muito fudido.
O avaliador do departamento de trânsito fez três
ligações. Uma para a polícia, praxe em caso de acidentes e porque qualquer
outro logo o faria, já que como se sabe acidentes juntam populares mais rápido
que doce junta formiga. A segunda ligação foi para a emergência, e a terceira
foi para o deputado Peixoto, que rapidamente ajeitou a situação e livrou o
filho do amigo de um processo criminal coisa que revoltou a família da senhora atropelada
e uns tantos quantos na internet, mas graças ao testemunho do nosso avaliador
que até agora não teve nome, o processo correu como infração de trânsito, tendo
cabido como pena ao nosso jovem lobo em pele de Carneiro apenas uma multa
irrisória diante do lucro da empresa de seu pai e a perda da autorização para
dirigir, coisa que em um ano ou menos ele pode recuperar, provavelmente com a
ajuda de algum avaliador conhecido do conhecido do seu pai.
Mas este não será o nosso avaliador, que agora já não
é avaliador, mas diretor do Departamento de Trânsito, cargo que atingiu meritocraticamente,
segundo a insuspeita opinião do deputado Peixoto. E para que não termine a
história sem que nosso personagem principal tenha um nome, chamá-lo-emos de
Diretor Morais.
Morais, digo, Moral: Está cada dia mais difícil
conseguir uma catarse nesse país.