25 de mai. de 2013

Hamartía


Faltando alguns minutos para o exame prático o telefone celular toca o hit do momento, coisa que não surpreende nenhum dos circunstantes, visto que o sujeito tinha mesmo cara de quem gosta de um bom rebolejo.
- Sou eu, pode falar.
- Aqui é o deputado Peixoto, lembra-se de mim?
- Claro, como não lembraria?
- Pois é, gostaria de um favor enorme seu.
- O que estiver ao meu alcance, excelência.
- Não precisa me chamar de excelência, estamos entre amigos. Olha só, hoje tem na sua lista aí um Marivaldo Carneiro...
- Só um minutinho, deputado – disse ele e, sabendo mais ou menos aonde ia aquela conversa, afastou-se dos candidatos que aguardavam o início do exame, isolando-se à sombra de uma árvore que havia no terreiro do Departamento de Trânsito.
- Pode falar agora.
- Muito bem, esse Marivaldo Carneiro é filho de Renaldo Carneiro, que vem a ser dono da Carneiro eventos, que por um feliz acaso patrocinou minha campanha... o senhor está entendendo onde quero chegar?
- Sim, mas devo perguntar uma coisa.
- Que coisa?
- Esse rapaz sabe mesmo dirigir? Porque tem coisa que a gente pode maneirar, pode ser nervosismo tal, geralmente a gente reprova o candidato, mas, quando é conhecido, a gente dá uma aliviada, né... Mas a gente não pode aprovar qualquer um...
- Mas não é qualquer um, o senhor não confia em mim?
- Claro, confio, deputado, só estou falando...
- Tudo bem, o senhor é um profissional. Se ele for realmente ruim, o reprove – o tom do deputado já não era tão cordial – não estou te pedindo para fazer nada além do que o senhor faz para seus conhecidos. E eu sou seu conhecido, não sou?
- Claro que é, deputado. Pode deixar, ajudarei da maneira que puder.
Desligou o telefone e encaminhou-se aos candidatos, que já aguardavam impacientes. Um sujeito magro e miúdo resmungava e o nosso avaliador só pôde ouvir as últimas palavras: “...tudo que é público é essa merda mesmo”.
- Muito bem – disse com a prancheta na mão – vamos iniciar com o senhor... Marivaldo Carneiro. – E disse consigo: “Tomara que não seja tão ruim, o moleque”.
O rapaz devia ter dezoito ou dezenove anos. Cara de arrogante, jeito de moleque inconsequente. “Pela batida da porta do carro se conhece o caráter de um homem”, pensou o avaliador, e não gostara nada, nada do caráter desse Carneiro, que antes mesmo de ele declarar iniciado o exame já dava a partida ao carro e começava a fazer as manobras de garagem. Só essa atitude já lhe cabia a perda de alguns pontos. Depois tocou os cones com a lateral do veículo, mais alguns pontos, aliás, menos alguns pontos. Por fim, e só quando o carro parou que o avaliador pôs reparo, o motorista estava sem o cinto de segurança, o que lhe caberia a reprovação imediata. Felizmente para o avaliador e para o avaliado nenhum dos outros candidatos podiam ver esses detalhes da prova, devido à distância que lhes era imposta entre o local de espera e o local de avaliação. O sujeito saiu do carro com a mesma arrogância, com a mesma cara de bunda, mas com ar de satisfação, como se tivesse feito o melhor estacionamento do mundo, ao passar pelo avaliador perguntou:
- E aí, como fui?
- O resultado é publicado no nosso site em até 48 horas – disse friamente, o rapaz saiu com o ar irritadiço.
Demorou-se dois minutos a decidir em qual quadrinho marcava um xis: se no de aprovado ou no de reprovado. Não tinha muito tempo de ponderar. Aprovou-o. E deu sequência aos exames.
Alguns dias depois o telefone toca, o mesmo número e a mesma voz do dia dos exames: ele sabia quem era.
- Estou muito satisfeito, se precisar de alguma coisa é só me procurar nesse número.
- Muito obrigado, deputado.
Passaram-se dias, meses, semanas. Já estava o episódio esquecido, esfriado, morto e enterrado. Ia o nosso avaliador pela avenida quando vê, com os próprios olhos, um carro de luxo se descontrolar, bater num poste e ainda de quebra atropelar uma senhora não tão senhora de si que no momento atravessava a rua distraída (distraída ela, senhora, não a rua).
Seguindo o instinto humano de ajudar o outro (ou de curiosidade, quem sabe), o nosso avaliador parou o carro e foi primeiro ver a vítima do atropelamento, que expirara no mesmo momento, o que era trágico, mas para o que qualquer ajuda seria vã. Em seguida foi até o carro e qual não foi a sua surpresa em reconhecer o tal Marivaldo Carneiro, coisa que o leitor já deve estar desconfiado que fosse acontecer desde o início do parágrafo anterior.
Carneiro estava consciente, apenas estagnado pelo susto do acidente. Olhava a frente do carro com os olhos vidrados e as mãos trêmulas.
- Você está bem? – perguntou o avaliador – não se machucou?
- A mulher morreu?
- Infelizmente sim.
- Tô fudido, muito fudido.
O avaliador do departamento de trânsito fez três ligações. Uma para a polícia, praxe em caso de acidentes e porque qualquer outro logo o faria, já que como se sabe acidentes juntam populares mais rápido que doce junta formiga. A segunda ligação foi para a emergência, e a terceira foi para o deputado Peixoto, que rapidamente ajeitou a situação e livrou o filho do amigo de um processo criminal coisa que revoltou a família da senhora atropelada e uns tantos quantos na internet, mas graças ao testemunho do nosso avaliador que até agora não teve nome, o processo correu como infração de trânsito, tendo cabido como pena ao nosso jovem lobo em pele de Carneiro apenas uma multa irrisória diante do lucro da empresa de seu pai e a perda da autorização para dirigir, coisa que em um ano ou menos ele pode recuperar, provavelmente com a ajuda de algum avaliador conhecido do conhecido do seu pai.
Mas este não será o nosso avaliador, que agora já não é avaliador, mas diretor do Departamento de Trânsito, cargo que atingiu meritocraticamente, segundo a insuspeita opinião do deputado Peixoto. E para que não termine a história sem que nosso personagem principal tenha um nome, chamá-lo-emos de Diretor Morais.
Morais, digo, Moral: Está cada dia mais difícil conseguir uma catarse nesse país.

Fernando Lago – Maio de 2013

12 de mai. de 2013

Vário



Brinquei por muito tempo
De fantasiar
Viajei por muitas luas
Descobri os centros das terras
Fui heróis de muitas guerras
Fui presidentes dos EUAs
Ditadores militares
Democratas exemplares
Fui ricos e famosos
Fui músicos virtuosos
Matadores de aluguéis
Dominadores de cartéis
Futebolistas fabulosos
Fui donos de bares
Meliantes de favelas
Artistas de novelas
Embaixadores de Mianmares

Fui gerentes de boticas
Operadores de empilhadeiras
Eu fui poetas de feiras
Amantes de mulheres ricas

Fui tudo, tudo, tudo
Mil coisas em um segundo
Eu fui o dono do mundo
Pai de família e vagabundo
Fui tudo, tudo, tudo

Até nada fui
Até nada sou

(Fernando Lago – Maio de 2013)