3 de nov. de 2010

Dois patinhos na lagoa...


Vinte e dois. Dois patinhos na lagoa. Número da legenda que elegeu o Tiririca. Número do tigre, no jogo do bicho. Número de um bocado de coisa que eu não lembro agora, e que também nem importa. O que importa, e veja que coisa terrível, é que é esse o número exato de anos que separam o dia em que vim ao mundo do dia de ontem. É, companheiros, vejam só que absurdo. Qualquer um hoje em dia pode se tornar adulto! Coisa inadmissível! Há já um ano que, oficialmente, não dependo de meus pais se quiser, por exemplo, casar. Na verdade, permitam-me confessar, nunca dependi deles pra isso. Dependo da minha noiva. O caso é que a danada resolveu se esconder muito bem escondida e disse que só aparece quando eu tomar jeito na vida. Fazer o que, né?

Enfim, são vinte e dois anos. Queria fazer um texto legal. Espremi ontem ao máximo. Mas desta laranja lagossantense não saiu palavra alguma. Assim, recorri ao arquivo e encontrei um texto recente que muito tem a ver com a data. Foi postado originalmente no blog Papo de Romeu e Julieta. Segue abaixo, com pequenas modificações que achei necessárias.




Era uma vez um menino



Um dia, me olhei no espelho e percebi que estava vivo. Coisa estranha. Desde esse dia, nunca mais consegui parar de viver... Nunca... nunca mais...
                    (Augusto Boal)

Era uma vez um príncipe encantado. Homem belo, elegante. Abastado. Andava pelas estradas montado em seu cavalo branco. Um belo alazão (seja lá o que for isso, não entendo de cavalos, a não ser de alguns poucos que já convivem comigo), educado, trotava elegantemente, obedecendo a todas as ordens reais de seu dono. Era no ano de 1988. O príncipe, desfilando garbosidade, encontrou uma princesa igualmente garbosa. Moça fina, mas chave de cadeia. Tiveram de viver várias peripécias, até casarem-se e viverem felizes para sempre.

Mas essa não é a nossa história.

Bem longe dali, aquém a toda essa elegância e garbosidade, num quarto de uma pequena casa no povoado de Pindorama, município de Porto Seguro, a senhora Hermenegilda realizava mais um parto de uma de suas netas. Era primeiro de novembro de mil novecentos e oitenta e oito. Dia de todos os santos. Há quem dirá que, naquele dia, dona Hermenegilda trazia ao mundo mais um santo. Há quem dirá o contrário.

Dona Hermenegilda tomou o bisneto choroso nos braços. Mal imaginava ela o quanto aquele choro escandaloso ia-se evoluir ao longo dos anos. Evoluir em sentimento. Em volume, diminuiria muito. Aquele menininho gordo que ali se esgoelava ia aprender a frear as manifestações dos seus sentimentos como ninguém. Dali a poucos anos, o menino seria dengoso, chorão. Usaria descaradamente o marketing infantil do choro. No entanto, passado os anos da infância, o menino choraria sempre em silêncio. Sempre pra dentro. Sempre meramente introspectivo. Já então, o bisneto de dona Hermenegilda não seria tão gordo. Aliás, seria magérrimo.

A velha parteira pôs o menino na cama, ao lado de sua neta, e o gordinho sorriu. Sorriso fácil, podia-se ver. O aconchego da mãe, o olhar carinhoso. Só poderia sorrir... Aprendeu a sorrir cedo. Nunca desaprendeu, apesar de todas as desilusões que o perseguiriam na vida. Ou seria ele próprio o perseguidor de ilusões? Há controversas.

O menino cultiva amores. Tem uma criação de afetos em seu quintal. Mas afeto é bicho de asa. Logo cresce, sai voando. Como é de seu feitio, o menino se irrita. Publica cartas, notas oficiais para a imprensa. Promete a todas as organizações competentes que nunca mais, nunca mais cultivará amores em sua horta ou criará afetos em seu quintal. Mas logo rasga tudo. Basta achar algo que pareça uma semente de amor ou um filhote de afeto que volta às suas atividades de pequeno agricultor.

Naquele momento, nenhuma dessas coisas passava pela cabeça dos familiares do menino. Talvez em tempo nenhum tenha passado. Talvez nem agora passe. O menino cresceu discreto, tímido, e a beleza não era seu forte. Combinação perigosa. Timidez e não-beleza. Mas o menino sobreviveu. Sobreviveu, embora tenha morrido tantas vezes para si mesmo. No entanto, o menino viciou em nascer. Sempre promete parar, mas não há quem lhe consiga tirar desse vício horrendo.

Naquele dia primeiro de novembro, no ano da Carta Magna da nossa Federação, nascia, num povoado pobre e anão, um não menos pobre e não menos pequeno sujeito. Fernando Lago Santos. Foi como deram de lhe chamar. Quem visse ali, aquele menino gordo nos braços da mãe, mal poderia imaginar quem ele seria no futuro. Hoje, exatos vinte e dois anos depois, a incógnita continua.

Quem seria esse sujeito impredicável? Que seria esse ser anti-social totalmente sociável? Inquietante enquete feita constantemente pelas minhas hemácias, meus leucócitos, meus anticorpos e, chefiando a pesquisa, meus neurônios, inquirindo a cada um dos átrios, ventrículos e veias do meu coração. Mas todos eles se abstêm.  


Fernando Lago - Outubro de 2010

3 comentários:

  1. Então...parabéns pela eterna busca.

    abrçs

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  2. E tudo tem a cara do Nando, até o fato de não saber onde a noiva tá! Ela foi fazer o enxoval oras, ou está na despedida de solteira?

    Parabéns de novo!

    Adoro-te!

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Pode se jogar, mas não esqueça a sua bóia, viu?