19 de ago. de 2011

O Maniqueísmo da Consciência



É hora de pegar meu caderninho de clichês. Ano que vem começa a ladainha e eu, moço consciente do meu papel cívico, vou querer acompanhar tudo timtim por timtim, do jeito que manda o roteiro.


Num primeiro estágio, vão começar a surgir sujeitos bem vestidos, de gravata até, oferecendo carona no seu carro popular, ou prestando a sua manifestação quadrienal de afeto e amizade. O cara irá fazer-se conhecido, aparecerá em eventos sociais, apoiará – pelo menos por palavras – toda e qualquer manifestação em favor dos pobres e necessitados. Lembrará que dali a algum tempo o país estará exercendo o pleno direito de escolher os seus líderes e evocará os mártires da História do Brasil para dizer da importância de o povo votar consciente. Por fim, revelará que será candidato, mas não por vontade dele, sim pela necessidade do povo.

De repente, setores ligados intrinsecamente a essa pessoa (por uma dívida de favor, uma submissão patronal ou sangue parental mesmo) passam a chamá-lo, simplesmente, de amigo. Amigo do povo.

Os amigos do povo ocupam a primeira fase quase inteira da campanha eleitoral. Não perdem um debate, um assunto, sempre tem postura para tudo, sempre do lado do povo. Também começam a aparecer os velhos amigos do povo, conhecidos já. Fiéis: de quatro em quatro anos sempre aparecem. Quando não para falarem de si, para promoverem os novos amigos do povo que, por mera coincidência, são aliados ao seu partido (que na maioria das vezes não é o mesmo de há quatro anos atrás).

No segundo estágio, a justiça eleitoral libera a campanha. O amigo do povo vira oficialmente candidato a uma cadeirinha na Câmara ou na Prefeitura, e promete ser amigo do povo de um novo jeito agora: vai lutar por ele “lá em cima”, onde dormem os que mandam. O amigo do povo agora aperta mãos, beija rostos, evocando as lembranças de “sempre estive com vocês”, relembrando toda a sua trajetória e ressaltando: nem era época de eleição! De repente o povo pensa: olha, nem todo político é mal, esse cara é nosso amigo, é gente da gente.

Chega o dia do pleito e é eleito o sujeito (ai, como estou poeta!). E todos se alegram: votaram conscientes! Mas, de repente, sem nenhuma explicação médica, o amigo do povo se esquece de que, um dia, foi o amigo do povo. E passa a ser ora amigo dos financiadores de sua campanha e governa pra eles. É isso, amigos. O problema dos nossos políticos é meramente patológico: amnésia.


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O mais complicado nesse negócio de consciência é que todo mundo que votou, votou consciente, na sua convicção. Mesmo o sujeito que votou no patrão porque esse lhe deu um aumento. Mesmo o rapaz que quer casar e votou em quem lhe deu a festa de graça. Mesmo os chegados que votaram nos chegados de outros chegados só por não ser chegado de mais ninguém. Não votaram dormindo, nem dopados, nem hipnotizados; votaram conscientes, mas na consciência deles.

Aí é que está a questão. Quando me dizem pra votar consciente o que estão chamando de consciência? Há os que pensam que ser consciente é votar pela direita, outros pensam que o melhor mesmo é ir pela esquerda, mas tem um bocado de gente que prefere a saída dos fundos. Por fim, uns tantos desiludidos tem a plena convicção de que a única maneira de votar consciente é não votando em ninguém.

Em estadia na Assembleia Legislativa comentamos com um dos bambambãs de lá a nossa decepção maximizada pelo comportamento dos deputados nas sessões ordinárias do plenário. O sujeito, obviamente, procurou defender os seus: disse que o deputado tem não sei quantas mil coisas a fazer e que nem sempre é possível estar disposto a prestar atenção em toda a sessão. Justo, respondemos, isso explica o estado aéreo em que a maioria deles se encontra no plenário. No entanto, não explica as conversas em voz alta no celular, as leituras de jornal enquanto os colegas estão na tribuna, e, num nível absurdamente maior, o total descaso com o povo que o elegeu. Tentou ainda nos convencer de que a democracia representativa é a melhor forma que o povo tem de participar do poder. Não conseguimos esconder a nossa vergonha de ter como nossa única representação aqueles senhores, os nossos eleitos.

O princípio da nossa maravilhosa democracia representativa é este: por meio do voto elegemos as pessoas que irão defender os nossos direitos na administração dos nossos próprios bens; por meio dos impostos pagamos o seu salário e por meio das leis que eles aprovam recebemos nosso retorno. Ou seja, eles são nossos funcionários. No entanto, definem seus próprios salários, ganham diversos benefícios, não obedecem as nossas ordens e, pior, dificilmente conseguimos demiti-los.

É por isso que tem cada vez mais gente achando corajosamente que o único voto consciente é o que inexiste. Digo corajosamente porque quando declaram isso publicamente são quase espancados pela opinião pública. Plagiando Voltaire, poderia dizer que posso não concordar com um voto absolutamente nulo (embora eu pense que pode ser uma ferramenta interessante, votar nulo por votar nulo não adianta nada), mas defendo até a morte o direito do cara votar como quiser. Se o princípio da palavra “eleição” é escolher o melhor dentre os apresentados, suponho que se não há um melhor, o melhor é escolher nenhum.

E haja Cacarecos!


Julho de 2011. Publicado em duas partes no Jornal Independente.

Um comentário:

  1. Eu ia dizer que essa é a triste realidade política do Brasil. Mas acho que é a triste realidade política mundial.

    Se me permite a opinião, acho que o sistema já erra quando não somos nós que escolhemos quem vai pra campanha como candidato, principalmente a presidência. Oras, ai a escolha é um tanto limitada, um partido escolhe por nós; E nós temos que escolher entre aqueles que o partido denominou. Nesse estágio a nossa liberdade já foi violada.
    Pra continuar a privação de nossa liberdade, o voto é obrigatório. Quando deveria ser apenas um direito.
    Se de tal modo fosse, o voto seria um ato puramente consciente, partiria da vontade do ser e então estes compreenderiam que votar é um dever social.
    O que o sistema não compreende, ou nos esconde, é que Dever Social é totalmente diferente de obrigação.
    O Dever social parte do próprio ser. De dentro pra fora; E não de forma contrária, como acontece nos dias de hoje [e desde sempre].

    Resumindo: Ta tudo errado!

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Pode se jogar, mas não esqueça a sua bóia, viu?