25 de jul. de 2012

Tempus fugit (3)

          Terceira Parte



Mal deu tempo de pensar, a água corrente da torneira veio com tudo na sua cara. Enquanto era carinhosamente despertado da sua falsa embriaguez pela mulher do café, uma senhora sem muita beleza, mas extremamente amada por todos os funcionários daquela empresa, como é típico das mulheres que servem café em todas as empresas do universo, o rapaz ia recobrando o equilíbrio, calculando tudo direitinho... Não podia ser!

Lembrava-se bem. Acordara às seis e meia. Tomara banho, escovara os dentes, uma média e um pão com mortadela no café da manhã e pronto: saiu de casa preparado para a jornada cotidiana. Depois de contemplar o caminhar matutino da menina de cabelo enrolado, igual a tantas outras manhãs, entrara no trabalho, como invariavelmente fazia todos os dias às sete horas e cinquenta e oito minutos da manhã, começando a operar no seu escritório exatamente às oito horas, do mesmo jeitinho que sempre fazia: nem um minuto a menos, nem um minuto a mais, pelos motivos que já conhecemos. Foi interpelado, logo que se sentou à sua mesa, pelo supervisor imediato que veio lhe falar dos relatórios da ultima grande operação de compra que fizeram, alguém da empresa fornecedora tinha cometido um erro e isto, naturalmente, era responsabilidade dele, que cuidava das operações de compras de estoque. Calmo como sempre, ele assumiu a responsabilidade e comprometeu-se em ligar para a pessoa com quem negociara na primeira oportunidade que tivesse. Como era natural da personalidade de pessoas que gostam de abusar da personalidade calma de outras pessoas, o supervisor emendou, como se não tivesse entendido o comprometimento do funcionário: “Pra hoje, hein! Pra hoje!” Após tomar todos os procedimentos de praxe para iniciar seu trabalho, nosso rapaz fez a ligação, foi firme com a pessoa, sem ser mal educado, deixou claro sua posição e desligou o telefone satisfeito. No intervalo de meia hora reservado para o almoço, comeu bife com batatas na mesa 35 da cantina da empresa e colocou ketchup nas batatas, deixando, por uma distração, um bocado cair por cima do bife, coisa que ele odiava. Ketchup era feito para massas, não para carnes, ora essa! Coisa que muita gente discordava, mas era sua opinião. Depois de satisfeita a fome, sentou-se, leu as notícias do futebol, seu time ia mal no campeonato... Três a zero em casa é dose! Arrotou, tomou água, foi ao banheiro, voltou ao seu escritório. Recebeu a ligação do supervisor dizendo que agora estava tudo ‘oquei’ com a operação de compra. Às cinco, saiu do trabalho e viu a moça de cabelo enrolado...

A senhora do café trouxe uma toalha limpa, ele enxugou o rosto e tomou o copo de café bem quente. Agradeceu, parecia outro.

- Não vá ficar mal acostumado – sorriu a senhora do café. Ele sorriu também e seguiu em direção à sua mesa.

O supervisor já esperava impaciente, não falou nada em descontar os dois minutos de atraso do salário, isso era lá com a administração, foi logo direto ao ponto: o erro da empresa fornecedora.

- De novo!? – exclamou o nosso amigo.

- Então já tinha acontecido antes? Que absurdo! Vamos ter cancelar o contrato com essa empresa. Isso é responsabilidade sua! Trate de corrigir isso pra hoje, pra hoje!

- Mas ainda ontem nós não...

Começou a entender o que se passava. Devia ser um sonho. Nossa! Estava com a memória boa, hein! Um sonho repetindo o dia, quase exatamente como tinha acontecido! Muito interessante, pra ele que sempre tinha sonhos confusos... Vamos embarcar nessa história, pensou. E retirou o telefone do gancho discando os números do telefone da empresa com quem negociara a compra dos produtos. Pediu para falar com o fulano de tal e foi logo mandando ele tomar no cu. Queria que ele corrigisse o erro imediatamente ou nunca mais negociaria com ele. Que porra era aquela? Lembrou que empresa como a dele, o fulano, existiam aos montes e que para trocar era daqui pr’ali... Depois de receber o pedido de desculpas acanhado do sujeito, desligou o telefone segurando o riso. Do outro lado, o fulano de tal que estava acostumado com o jeito educado do nosso rapaz dizia consigo: deve estar tendo um dia ruim...

Sentiu sono... Não se lembrava de ter dormido. Mal conseguia entender como poderia estar sonhando, tão conscientemente. E se fosse um sonho acordado? Ou pior, se ele estivesse louco? Dane-se! Ele precisava mesmo fazer alguma loucura. Era a ocasião perfeita.

Não demorou muito ao supervisor lhe telefonar.

- O que você fez com o fulano da empresa fornecedora, rapaz?

- Fui só um pouquinho duro com ele...

- Um pouquinho duro? Em dois minutos ele resolveu o problema! Cara, que desgrama foi essa?

- Mandei ele ir tomar no cu. E vou fazer o mesmo com você daqui a pouco se não parar de me encher o saco!

- Calma, rapaz! Soube que você está tendo um mal dia hoje... Mas não se preocupe, isso vai ficar entre nós.

- Agradeço, viado!

E desligou o telefone na cara do supervisor. Ao contrário do que pensou, não foi mais incomodado por ele durante o resto do dia. Só o viu de novo na hora do almoço, quando ele sentou-se à sua frente, na mesa 35. Ficaram em silêncio por alguns instantes, até que o supervisor começou a falar:

- Sabe, não é nada garantido. Mas posso te colocar na cola de uma parada que vai rolar aí pro mês que vem...

- Cara, vai direto ao assunto, por favor!

- Certo, também gosto de objetividade! Eu vou sair da empresa e estou pensando em te indicar pro meu lugar na supervisão.

- Opa! Estou nessa! Posso saber por que isso agora?

- Você hoje mostrou que tem atitude...

- Que merda!

- O que? Isso te incomoda?

- Não é isso! Deixei o ketchup cair no bife de novo!

Às cinco horas em ponto, lá estava o nosso rapaz de novo, exausto, saindo de mais um dia de trabalho. Mas que sonho grande era esse? Não podia ser um sonho! Tinha certeza agora: estava louco! Mas a certeza foi embora quando se atinou de uma coisa. Nenhum louco pode ter tanta certeza de estar louco. Depois replicou a própria afirmação: como poderia saber disso se ele mesmo nunca tinha ficado louco antes? Seu pensamento ia perdido nessas coisas quando percebeu, caminhando à sua frente, a menina de cabelo enrolado. 

Fernando Lago - Julho de 2012

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Pode se jogar, mas não esqueça a sua bóia, viu?