Imagem: world wide web
Mal deu tempo de pensar,
a água corrente da torneira veio com tudo na sua cara. Enquanto era
carinhosamente despertado da sua falsa embriaguez pela mulher do café, uma
senhora sem muita beleza, mas extremamente amada por todos os funcionários
daquela empresa, como é típico das mulheres que servem café em todas as
empresas do universo, o rapaz ia recobrando o equilíbrio, calculando tudo
direitinho... Não podia ser!
Lembrava-se bem.
Acordara às seis e meia. Tomara banho, escovara os dentes, uma média e um pão
com mortadela no café da manhã e pronto: saiu de casa preparado para a jornada
cotidiana. Depois de contemplar o caminhar matutino da menina de cabelo enrolado,
igual a tantas outras manhãs, entrara no trabalho, como invariavelmente fazia
todos os dias às sete horas e cinquenta e oito minutos da manhã, começando a
operar no seu escritório exatamente às oito horas, do mesmo jeitinho que sempre
fazia: nem um minuto a menos, nem um minuto a mais, pelos motivos que já
conhecemos. Foi interpelado, logo que se sentou à sua mesa, pelo supervisor
imediato que veio lhe falar dos relatórios da ultima grande operação de compra
que fizeram, alguém da empresa fornecedora tinha cometido um erro e isto,
naturalmente, era responsabilidade dele, que cuidava das operações de compras
de estoque. Calmo como sempre, ele assumiu a responsabilidade e comprometeu-se
em ligar para a pessoa com quem negociara na primeira oportunidade que tivesse.
Como era natural da personalidade de pessoas que gostam de abusar da
personalidade calma de outras pessoas, o supervisor emendou, como se não
tivesse entendido o comprometimento do funcionário: “Pra hoje, hein! Pra hoje!”
Após tomar todos os procedimentos de praxe para iniciar seu trabalho, nosso
rapaz fez a ligação, foi firme com a pessoa, sem ser mal educado, deixou claro
sua posição e desligou o telefone satisfeito. No intervalo de meia hora
reservado para o almoço, comeu bife com batatas na mesa 35 da cantina da
empresa e colocou ketchup nas batatas, deixando, por uma distração, um bocado
cair por cima do bife, coisa que ele odiava. Ketchup era feito para massas, não
para carnes, ora essa! Coisa que muita gente discordava, mas era sua opinião.
Depois de satisfeita a fome, sentou-se, leu as notícias do futebol, seu time ia
mal no campeonato... Três a zero em casa é dose! Arrotou, tomou água, foi ao
banheiro, voltou ao seu escritório. Recebeu a ligação do supervisor dizendo que
agora estava tudo ‘oquei’ com a operação de compra. Às cinco, saiu do trabalho
e viu a moça de cabelo enrolado...
A senhora do café
trouxe uma toalha limpa, ele enxugou o rosto e tomou o copo de café bem quente.
Agradeceu, parecia outro.
- Não vá ficar mal
acostumado – sorriu a senhora do café. Ele sorriu também e seguiu em direção à
sua mesa.
O supervisor já
esperava impaciente, não falou nada em descontar os dois minutos de atraso do
salário, isso era lá com a administração, foi logo direto ao ponto: o erro da
empresa fornecedora.
- De novo!? – exclamou
o nosso amigo.
- Então já tinha
acontecido antes? Que absurdo! Vamos ter cancelar o contrato com essa empresa.
Isso é responsabilidade sua! Trate de corrigir isso pra hoje, pra hoje!
- Mas ainda ontem nós
não...
Começou a entender o
que se passava. Devia ser um sonho. Nossa! Estava com a memória boa, hein! Um
sonho repetindo o dia, quase exatamente como tinha acontecido! Muito
interessante, pra ele que sempre tinha sonhos confusos... Vamos embarcar nessa
história, pensou. E retirou o telefone do gancho discando os números do
telefone da empresa com quem negociara a compra dos produtos. Pediu para falar
com o fulano de tal e foi logo mandando ele tomar no cu. Queria que ele
corrigisse o erro imediatamente ou nunca mais negociaria com ele. Que porra era
aquela? Lembrou que empresa como a dele, o fulano, existiam aos montes e que
para trocar era daqui pr’ali... Depois de receber o pedido de desculpas
acanhado do sujeito, desligou o telefone segurando o riso. Do outro lado, o
fulano de tal que estava acostumado com o jeito educado do nosso rapaz dizia
consigo: deve estar tendo um dia ruim...
Sentiu sono... Não se
lembrava de ter dormido. Mal conseguia entender como poderia estar sonhando,
tão conscientemente. E se fosse um sonho acordado? Ou pior, se ele estivesse
louco? Dane-se! Ele precisava mesmo fazer alguma loucura. Era a ocasião
perfeita.
Não demorou muito ao
supervisor lhe telefonar.
- O que você fez com o
fulano da empresa fornecedora, rapaz?
- Fui só um pouquinho
duro com ele...
- Um pouquinho duro? Em
dois minutos ele resolveu o problema! Cara, que desgrama foi essa?
- Mandei ele ir tomar
no cu. E vou fazer o mesmo com você daqui a pouco se não parar de me encher o
saco!
- Calma, rapaz! Soube
que você está tendo um mal dia hoje... Mas não se preocupe, isso vai ficar
entre nós.
- Agradeço, viado!
E desligou o telefone
na cara do supervisor. Ao contrário do que pensou, não foi mais incomodado por
ele durante o resto do dia. Só o viu de novo na hora do almoço, quando ele
sentou-se à sua frente, na mesa 35. Ficaram em silêncio por alguns instantes,
até que o supervisor começou a falar:
- Sabe, não é nada
garantido. Mas posso te colocar na cola de uma parada que vai rolar aí pro mês
que vem...
- Cara, vai direto ao
assunto, por favor!
- Certo, também gosto
de objetividade! Eu vou sair da empresa e estou pensando em te indicar pro meu
lugar na supervisão.
- Opa! Estou nessa!
Posso saber por que isso agora?
- Você hoje mostrou que
tem atitude...
- Que merda!
- O que? Isso te
incomoda?
- Não é isso! Deixei o
ketchup cair no bife de novo!
Às cinco horas em
ponto, lá estava o nosso rapaz de novo, exausto, saindo de mais um dia de
trabalho. Mas que sonho grande era esse? Não podia ser um sonho! Tinha certeza
agora: estava louco! Mas a certeza foi embora quando se atinou de uma coisa. Nenhum
louco pode ter tanta certeza de estar louco. Depois replicou a própria
afirmação: como poderia saber disso se ele mesmo nunca tinha ficado louco
antes? Seu pensamento ia perdido nessas coisas quando percebeu, caminhando à
sua frente, a menina de cabelo enrolado.
Fernando Lago - Julho de 2012
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Pode se jogar, mas não esqueça a sua bóia, viu?