Imagem: internet
Perturbado, o rapaz
entrou no primeiro ponto de comércio que lhe apareceu na frente. Um bar, como
não é de se surpreender, visto que é a coisa mais fácil de se encontrar em
todas as cidades do país em que ele morava que, ao contrário do que vocês provavelmente
têm pensado até agora, não é o nosso, embora seja muito, muito parecido – inclusive
no sistema de governo, uma democracia maravilhosa e sem máculas. Na rapidez das
atitudes, nosso amigo tinha até esquecido que aquele estabelecimento lhe era
familiar das sextas feiras, especialmente as de início de mês, em que ele,
solteiro de nascença, dispendia uma bela porcentagem do seu salário reservada
exclusivamente para esse fim.
O dono do bar o olhou
com estranheza e familiaridade, o que parecerá aos leitores espertos uma tremenda
contradição da parte de quem conta a história, podendo mesmo acusar a este de
não estar narrando com clareza os fatos, mas tudo se explica em dois tempos. A
familiaridade do dono do bar, que era também atendente e garçom, se deu,
naturalmente, por conhecer de muitas sextas feiras o rapaz que ali acabara de
entrar. Quanto à estranheza, veio justamente por não ser aquele dia uma sexta
feira. A terceira coisa – se não dissemos que havia uma terceira coisa, fiquem
agora sabendo – explica-se pela fala do comerciante de alegrias engarrafadas,
que recebeu o cliente de braços abertos dizendo:
- Ora vejam, o senhor
por aqui a essa hora da manhã!
A fala do dono do bar,
embora acolhedora, perturbou ainda mais o espírito do nosso rapaz. Manhã? Como
assim manhã?
- Por acaso, são que
horas agora, senhor?
- Ora, agora? – a mesma
pergunta sem razão de existir e igualmente sem resposta, porque sempre que a
faziam, o próprio questionador já emendava, como fizera a menina de cabelo
enrolado e ora fazia o dono do bar, consultando o celular da mesma forma que a
outra o fez:
– Agora são 7:40.
- Mas que absurdo!
- Tem razão... O tempo
passa que a gente nem vê. Mas é bem melhor, se me permite a intromissão, que o
senhor não tenha tempo de beber, já que vai entrar no trabalho em instantes...
- Tem razão o senhor. Tenha
um bom dia aí com as seus bêbados e as suas garrafas.
Saiu e entrou no
próximo estabelecimento que também era um bar, porém não conhecido, com um dono
de cara amarrada – não amarrada, assim, como que atada com uma corda de sisal
ou outro tipo de corda qualquer, mas amarrada no sentido de cheia de marra.
Esta marra, se nos permite ir a fundo nessa história, se dava justamente pelo
fato de que, embora o bar não fosse conhecido do nosso amigo, este era muito
conhecido do bar, representado, é claro, pelo seu dono. Todas as sextas feiras,
especialmente aquelas em que recebia a parte que lhe cabia daquele latifúndio,
o rapaz era visto festejando no outro bar, cheio de amigos, de cachaça e de
dinheiro para gastar, já que não tinha nenhuma esposa que tomar conta e, caso
lhe faltasse alguma coisa em casa, ninguém para reclamar da falta de
assistência no orçamento familiar. Mas, apesar disso, era controlado e não
gastava além da referida cota reservada para os divertimentos da sexta. O que
despeitava o dono do bar era o fato de o rapaz escolher o seu concorrente e não
a ele, sem que nem por que, já que a qualidade de ambos os bares era a mesma.
Mas isto não lhe
importava ao rapaz, que só queria saber que mistério era esse de três relógios
estarem marcando uma hora matutina quando o dia já avançava o turno vespertino,
quase pronto para entrar no noturno. Devia ser algum desses novos vírus que
andavam a afetar os celulares mais modernos. Isso que dá essa onda de evolução
tecnológica. Entrou no bar do homem de cara amarrada e, sem bons dias ou boas
tardes, já foi logo perguntando:
- Alguém poderia me
informar as horas?
Com que decepção o
homem de cara amarrada deve ter ouvido isso. De repente, o sujeito que
desprezara o bar dele por tantas sextas feiras agora entrava por aquela porta e,
ao invés de cumprimentar, como é de se esperar de um cavalheiro, mesmo que num
bar, e logo em seguida ao cumprimento pedir uma dose de cachaça, uma taça de
vinho ou uma garrafa de cerveja, simplesmente entrava pela porta estreita, que
não era a do evangelho, e gritava pedindo que lhe informassem as horas. Mas que
desaforo! Que heresia para com o código de conduta dos bares do mundo!
Um sujeito levantou-se
educadamente, sacou alguma coisa do bolso. O que levou o nosso amigo ao
desespero.
- Não, não, não, não,
não!
- Calma, meu senhor –
disse o bêbado, numa lucidez inacreditável – é só um celular.
- Justamente, esse é o
problema! – disse o rapaz, que apesar de ter acabado de entrar no bar parecia
ser o menos sóbrio no local – no celular não, por favor! Alguém não tem um
relógio de pulso?
- Que besteira, é a
mesma coisa – tornou o bêbado.
- Não, obrigado,
realmente prefiro um relógio-relógio mesmo – explicou o rapaz.
- Mas é atualizado via
satélite! – insistiu o bêbado.
- Enfia esse celular,
amigo! Já falei que não quero saber! – disse o rapaz, deixando a placidez de
lado.
- Vamos acalmar, vamos
acalmar... – gritou o sujeito de cara amarrada de lá de traz do balcão,
abrigado entre as garrafas e porções.
- Por favor, gente! Eu
só quero saber a hora, e que não seja de um celular, por favor!
- Manda esse filho duma
égua sair daqui agora – disse o bêbado do celular, dirigindo-se ao homem de
cara amarrada – se não, não respondo por mim.
Ironia, pensou o homem
da cara amarrada enquanto acompanhava o nosso amigo até a calçada, na primeira
vez que o farrista das sextas feiras de pagamento entrava em seu bar, ele tinha
que expulsá-lo. Era ocasião de tomar ainda mais raiva da cara do rapaz, mas
aconteceu o processo contrário. O que lhe invadiu foi uma certa simpatia pelo
jovem, teve vontade de perguntar o que estava acontecendo na sua vida, se fora
traído pela namorada, esposa ou romance informal, forma menos corrente de se
referir a estes flertes que duram muito ou a estes namoros que duram pouco. Mas
não teve tempo para tanto. Era o exato momento em que um carro prata parou
quase que em cima dos quatro pés que ali estavam na calçada, os dele e os do
rapaz. O vidro da janela dianteira desceu e surgiu ali um rosto bonachão e
conhecido do nosso amigo. Era um companheiro de trabalho.
- Puta que pariu,
rapaz! Você está bebendo numa hora dessas! Entra logo aqui, se não vai chegar
atrasado no trabalho!
Sem entender
absolutamente nada do que estava acontecendo, o nosso sujeito que já
demonstrava no rosto algumas alterações psicotrópicas, embora não tivesse
ingerido quaisquer substâncias com esse efeito, entrou no carro sentando no
banco do carona, uma informação óbvia, visto que o banco do motorista já era
ocupado pelo seu colega de trabalho, que não confiaria o seu carro a ninguém,
muito menos alguém que estivesse aparentemente bêbado.
- O que aconteceu,
rapaz? Passou a noite na gandaia, é?
- Que horas...? –
balbuciou o rapaz.
- Que horas o que?
- Que horas são?
- Quase oito, malandro!
Hora de trabalhar. Vamos entrar pelos fundos pro gerente não te ver assim, a
gente toma um café bem forte e pimba! O que há com você, cara? Em pleno meio de
semana desse jeito! Isso só pode ser coisa de puta.
Como estava tendencioso
a confirmar tudo o que ouvia, o rapaz apenas falou, baixo:
- É, foi uma puta
mesmo...
Fernando Lago - Julho de 2012
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Pode se jogar, mas não esqueça a sua bóia, viu?