21 de jul. de 2012

Tempus fugit (2)

           Segunda parte


Imagem: internet 

Perturbado, o rapaz entrou no primeiro ponto de comércio que lhe apareceu na frente. Um bar, como não é de se surpreender, visto que é a coisa mais fácil de se encontrar em todas as cidades do país em que ele morava que, ao contrário do que vocês provavelmente têm pensado até agora, não é o nosso, embora seja muito, muito parecido – inclusive no sistema de governo, uma democracia maravilhosa e sem máculas. Na rapidez das atitudes, nosso amigo tinha até esquecido que aquele estabelecimento lhe era familiar das sextas feiras, especialmente as de início de mês, em que ele, solteiro de nascença, dispendia uma bela porcentagem do seu salário reservada exclusivamente para esse fim.

O dono do bar o olhou com estranheza e familiaridade, o que parecerá aos leitores espertos uma tremenda contradição da parte de quem conta a história, podendo mesmo acusar a este de não estar narrando com clareza os fatos, mas tudo se explica em dois tempos. A familiaridade do dono do bar, que era também atendente e garçom, se deu, naturalmente, por conhecer de muitas sextas feiras o rapaz que ali acabara de entrar. Quanto à estranheza, veio justamente por não ser aquele dia uma sexta feira. A terceira coisa – se não dissemos que havia uma terceira coisa, fiquem agora sabendo – explica-se pela fala do comerciante de alegrias engarrafadas, que recebeu o cliente de braços abertos dizendo:

- Ora vejam, o senhor por aqui a essa hora da manhã!

A fala do dono do bar, embora acolhedora, perturbou ainda mais o espírito do nosso rapaz. Manhã? Como assim manhã?

- Por acaso, são que horas agora, senhor?

- Ora, agora? – a mesma pergunta sem razão de existir e igualmente sem resposta, porque sempre que a faziam, o próprio questionador já emendava, como fizera a menina de cabelo enrolado e ora fazia o dono do bar, consultando o celular da mesma forma que a outra o fez:

 – Agora são 7:40.

- Mas que absurdo!

- Tem razão... O tempo passa que a gente nem vê. Mas é bem melhor, se me permite a intromissão, que o senhor não tenha tempo de beber, já que vai entrar no trabalho em instantes...

- Tem razão o senhor. Tenha um bom dia aí com as seus bêbados e as suas garrafas.

Saiu e entrou no próximo estabelecimento que também era um bar, porém não conhecido, com um dono de cara amarrada – não amarrada, assim, como que atada com uma corda de sisal ou outro tipo de corda qualquer, mas amarrada no sentido de cheia de marra. Esta marra, se nos permite ir a fundo nessa história, se dava justamente pelo fato de que, embora o bar não fosse conhecido do nosso amigo, este era muito conhecido do bar, representado, é claro, pelo seu dono. Todas as sextas feiras, especialmente aquelas em que recebia a parte que lhe cabia daquele latifúndio, o rapaz era visto festejando no outro bar, cheio de amigos, de cachaça e de dinheiro para gastar, já que não tinha nenhuma esposa que tomar conta e, caso lhe faltasse alguma coisa em casa, ninguém para reclamar da falta de assistência no orçamento familiar. Mas, apesar disso, era controlado e não gastava além da referida cota reservada para os divertimentos da sexta. O que despeitava o dono do bar era o fato de o rapaz escolher o seu concorrente e não a ele, sem que nem por que, já que a qualidade de ambos os bares era a mesma.

Mas isto não lhe importava ao rapaz, que só queria saber que mistério era esse de três relógios estarem marcando uma hora matutina quando o dia já avançava o turno vespertino, quase pronto para entrar no noturno. Devia ser algum desses novos vírus que andavam a afetar os celulares mais modernos. Isso que dá essa onda de evolução tecnológica. Entrou no bar do homem de cara amarrada e, sem bons dias ou boas tardes, já foi logo perguntando:

- Alguém poderia me informar as horas?

Com que decepção o homem de cara amarrada deve ter ouvido isso. De repente, o sujeito que desprezara o bar dele por tantas sextas feiras agora entrava por aquela porta e, ao invés de cumprimentar, como é de se esperar de um cavalheiro, mesmo que num bar, e logo em seguida ao cumprimento pedir uma dose de cachaça, uma taça de vinho ou uma garrafa de cerveja, simplesmente entrava pela porta estreita, que não era a do evangelho, e gritava pedindo que lhe informassem as horas. Mas que desaforo! Que heresia para com o código de conduta dos bares do mundo!

Um sujeito levantou-se educadamente, sacou alguma coisa do bolso. O que levou o nosso amigo ao desespero.

- Não, não, não, não, não!

- Calma, meu senhor – disse o bêbado, numa lucidez inacreditável – é só um celular.

- Justamente, esse é o problema! – disse o rapaz, que apesar de ter acabado de entrar no bar parecia ser o menos sóbrio no local – no celular não, por favor! Alguém não tem um relógio de pulso?

- Que besteira, é a mesma coisa – tornou o bêbado.

- Não, obrigado, realmente prefiro um relógio-relógio mesmo – explicou o rapaz.

- Mas é atualizado via satélite! – insistiu o bêbado.

- Enfia esse celular, amigo! Já falei que não quero saber! – disse o rapaz, deixando a placidez de lado.

- Vamos acalmar, vamos acalmar... – gritou o sujeito de cara amarrada de lá de traz do balcão, abrigado entre as garrafas e porções.

- Por favor, gente! Eu só quero saber a hora, e que não seja de um celular, por favor!

- Manda esse filho duma égua sair daqui agora – disse o bêbado do celular, dirigindo-se ao homem de cara amarrada – se não, não respondo por mim.

Ironia, pensou o homem da cara amarrada enquanto acompanhava o nosso amigo até a calçada, na primeira vez que o farrista das sextas feiras de pagamento entrava em seu bar, ele tinha que expulsá-lo. Era ocasião de tomar ainda mais raiva da cara do rapaz, mas aconteceu o processo contrário. O que lhe invadiu foi uma certa simpatia pelo jovem, teve vontade de perguntar o que estava acontecendo na sua vida, se fora traído pela namorada, esposa ou romance informal, forma menos corrente de se referir a estes flertes que duram muito ou a estes namoros que duram pouco. Mas não teve tempo para tanto. Era o exato momento em que um carro prata parou quase que em cima dos quatro pés que ali estavam na calçada, os dele e os do rapaz. O vidro da janela dianteira desceu e surgiu ali um rosto bonachão e conhecido do nosso amigo. Era um companheiro de trabalho.  

- Puta que pariu, rapaz! Você está bebendo numa hora dessas! Entra logo aqui, se não vai chegar atrasado no trabalho!

Sem entender absolutamente nada do que estava acontecendo, o nosso sujeito que já demonstrava no rosto algumas alterações psicotrópicas, embora não tivesse ingerido quaisquer substâncias com esse efeito, entrou no carro sentando no banco do carona, uma informação óbvia, visto que o banco do motorista já era ocupado pelo seu colega de trabalho, que não confiaria o seu carro a ninguém, muito menos alguém que estivesse aparentemente bêbado.

- O que aconteceu, rapaz? Passou a noite na gandaia, é?

- Que horas...? – balbuciou o rapaz.

- Que horas o que?

- Que horas são?

- Quase oito, malandro! Hora de trabalhar. Vamos entrar pelos fundos pro gerente não te ver assim, a gente toma um café bem forte e pimba! O que há com você, cara? Em pleno meio de semana desse jeito! Isso só pode ser coisa de puta.

Como estava tendencioso a confirmar tudo o que ouvia, o rapaz apenas falou, baixo:

- É, foi uma puta mesmo... 

Fernando Lago - Julho de 2012 

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Pode se jogar, mas não esqueça a sua bóia, viu?