12 de out. de 2009

Medo do medo

Valdomiro já não conseguia não pensar em tragédia. Era fato. A qualquer coisa que fazia, em qualquer hora do seu dia, uma tragédia estava na cabeça. Foi a sua constatação ao dialogar com seu rosto no espelho encardido do banheiro do quarto.

Não sabia de onde lhe vinha aquele pessimismo que lhe invadia o ser ultimamente. Mas de uns tempos pra cá não conseguia se fixar em nada. Nem no programa da Ophra, que ele era acostumado a assistir na TV do hotel em que ele jantava todas as noites.

Vivia sozinho. O casamento nunca chegou à sua vida. Viu quase todos os seus amigos da escola casando, depois os da faculdade, depois, por fim, os companheiros mais jovens do bar. Mas não veio pra ele. O porquê ele ignorava. E também não tinha a mínima vontade de saber. Uma das posições que tomara quando completou trinta e cinco anos foi a de não preocupar-se mais em achar uma mulher para amar. Isso não obstante aos conselhos da mãe, com quem viveu até os quarenta, quando ela e seu pai se separaram. A velha preferiu mudar-se para o interior com uma filha mais velha advinda de outro casamento anterior à existência de Valdomiro, deixando filho e pai desamparados, sem mulher em casa. Alguns meses depois o velho morreu tragicamente: amanheceu sem vida num domingo ensolarado. Conquanto todos admirassem esse tipo de morte e sonhassem com ela, para Valdomiro não havia nada de mais trágico. Morrer assim, de uma hora pra outra. Sem prévio aviso e sem motivo aparente. Muito mais trágico que um acidente de trem.

No entanto, não foi a partir desta tragédia convencional que o nosso Valdomiro passou a esse comportamento medroso. Alguns anos depois veio a morte da mãe, mas também não foi por isso. Na verdade nem ele sabia o motivo. Mas ao sair de casa, temia que ocorresse um acidente no caminho. Que o carro se descontrolasse na Avenida Getúlio Vargas. Tinha medo que um motoqueiro maluco atravessasse na sua frente num sinal vermelho. Receava que o local para o qual se dirigia estivesse em chamas e todos os seus companheiros ali morrendo, sem que ele pudesse fazer nada.

Tinha poucos amigos. Alguns resistiram aos anos que decorreram depois da faculdade. Outros se foram sumindo pelo caminho. Alguns novatos chegaram como clientes que, agradecidos pelo bom atendimento no caixa número três do Banco do Brasil resolviam dar de esmola um pouco de sua amizade àquele velho à beira da aposentadoria. Mas temia que essas raras amizades se quebrassem. Ou que alguns destes amigos morressem assim de repente, como o seu velho pai.

Durante o trabalho no banco não tinha muito medo de ser assaltado, porque nestes treze anos em que serviu ao governo federal já tinha enfrentado três ou quatro assaltos à mão armada naquela agência. Temia incêndios, explosões, essas coisas cinematográficas que nunca tinha visto na vida real. Ao retornar a casa tinha medo que a encontrasse em chamas. Pensou que talvez pudesse estar com síndrome do pânico. Mas descartou a hipótese ao estudar bem os sintomas. Não contou pra ninguém do seu medo. Não consultou nenhum médico. Achava que a medicina – da qual estudou três semestres e desistiu, não por não gostar do curso ou por não agüentar os estudos, mas por falta de dinheiro – achava que era tudo charlatanice. Talvez carregasse alguma raiva por não ter podido concluir o curso. Isso jamais saberemos, porque nosso amigo não procurou um psicólogo que o analisasse.

O gerente do banco, que muito o considerava, veio certo dia ao seu encontro para saber o que acontecia que ele andava tão calado.

- Tenho passado uns maus bocados, só isso! Coisa minha!

O mesmo não disse à moça que lhe fazia companhia à noite, numa destas casas escusas que em toda cidade há.

- Ando com muito medo ultimamente, minha nega!

- Ora, meu dengo, por quê?

- Não sei. Acho que tenho medo de ter medo...

A moça não disse nada. Apenas soltou um grunhido de quem não sabe de nada da vida a não ser a velha técnica milenar da profissão. Grunhido claramente fingido, de quem não quer se meter nas coisas dos outros. Acabada a noite Valdomiro saiu de lá arrependido de ter falado à moça em tal preocupação. Mas olhando pros seus cinqüenta e cinco anos de homem solteiro, acabou saindo com uma conclusão. Nesta vida, somente as prostitutas saberão os mais ocultos segredos.

Fernando Lago Santos – 11 de Outubro de 2009

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