Aquele olhar sim, eu nunca vou esquecer. Não pelo olhar em si, porque já estou acostumado a vê-los deste tipo e até a senti-los em mim mesmo. Muito comum, quando não sou capaz de disfarçá-los. A vida me ensinou técnicas de dissimulação, as mais diversas. Quase não uso, porém, a não ser em alguns casos. Mas aquele cara... Um intelectual!
Era um sujeito realmente impressionante. Concordavam todos com isso, até os que discordavam dele nas suas convicções. Com todos os seus defeitos, sua inteligência era inegável. Meio doido, diga-se de passagem, como a grande maioria dos intelectuais. Roupas esquisitas, sem padrão de moda, cabelo grande e despenteado... um sujeito esquisito. Mas a esquisitice dava lugar à admiração, quando opinava. E tinha opinião sobre tudo. Tudo mesmo. Podia até estar errado, mas tinha uma opinião... Falava-se de um assunto e ele dizia: “Penso isso, por tais e tais motivos, por tais e tais fundamentos, por tais e tais autores clássicos, por tais e tais autores modernos...”
Não significa que concordavam com tudo que ele falava. E essa é a grande beleza da coisa! O intelectual pode e deve ser contestado; intelectual não contestado não é intelectual. Toda idéia requer debate; nada pode circular sem debate. Debate que pode virar discussão, que pode virar até briga... mas a idéia circula.
Eu estava sentado, um canto quase invisível do corredor. Pouca luz, lugar ermo, escondido; ele não me viu. Melhor assim. Naquele instante, pensando na minha vida distante, o que eu menos queria era um debate político-filosófico no corredor. E ele era mestre pra isso. Não conseguia ver um parado sem retomar um debate interrompido, ou iniciar um novo debate sobre isto ou aquilo outro, esta ou aquela postura deste ou daquele... Na falta de uma matéria, até Alice no País das Maravilhas virava pauta... Conseguia fazer relação com tudo. Alice com Aristóteles, Aristóteles com Cesar, Cesar com Calígula, Calígula com o Presidente Lula, o Presidente Lula com ele mesmo... Era um senhor cheio de relações. As mais demoradas possíveis, e por isso me encolhi ao máximo, na penumbra daquele canto de corredor, para que não fosse chamado a mais uma discussão teórica.
Não deixei de observar que uma moça chegava. Mais nova, amiga dele de há muito. Eu não gostava dela. Pouca gente gostava... Abraçou-o, ele retribuiu e olhou pro nada. Este olhar, exatamente este olhar... O nada! Olhar pro nada é atitude de poucos... Olhar pro nada é atitude filosófica, mas não de filósofos. É filosofia empírica, é coisa de sentimento. Olhou pro nada, mas não simplesmente olhou pro nada. Olhou pro nada como quem procurasse no nada algo que o levasse a um tudo.
Foi uma das minhas maiores descobertas pseudo-científicas: os intelectuais – mesmo os mais loucos e mais reflexivos – os intelectuais não estão imunes ao amor...
Fernando Lago Santos - Junho de 2010